Ésquilo com Lacan
O desejo do Outro
De objeto precioso a dejeto
De sujeito a objeto
Ela se esfinge de peste
Óidipous, filho de Laios - A história de Édipo Rei pelo avesso. É uma transcriação de Antonio Quinet da clássica tragédia de Sófocles, encenada pela Cia. Inconsciente em Cena com música de José Eduardo Costa Silva e coreografias de Regina Miranda. A peça já foi vista por 5000 pessoas e reestrará em São Paulo para uma temporada de um mês em junho deste ano no Teatro Fábrica.
Geralmente, a "catarse'", é entendida como "purgação" - uma eliminação, dentro de uma terminologia médica. Porém, a tragédia ao suscita e faz a "catarse" da compaixão e do terror. Será que ela nos livra desses sentimentos, ou ao contrário, nos faz experimentá-los de tal forma que conseguimos lidar com eles através da arte?
Não podemos entender catarse no sentido de eliminação pois não se trata de eliminar o terror e a compaixão como se elimina a excreta na urina. Ao desmedicalizar o termo catarse descobrimos seu verdadeiro sentido: a tragédia purifica esses afetos e deliberadamente deixa-os evidentes, claros, puros.
A tragédia radicaliza: ela visa salientar o sofrimento do espectador, ela quer que ele o sinta puramente, delineadamente.
Nietzsche por Munch (1906)
O apolíneo é o âmbito da figuração, da bela aparência, do mundo dos sonhos (o sonho como figuração plástica) e das fantasias, do poder divinatório característica do deus Apolo, a quem os gregos erigiram um santuário em Delfos onde se situava o Ônfalus, umbigo do mundo.
O dionisíaco é a “exceção ao princípio da razão”. É a embriaguês, o delicioso êxtase, da beberagem narcótica à alegria pela aproximação da primavera após o inverno passando pelo terror e pela violência dionisíaca que arrasta multidões cantando e dançando bramando a vida candente, como no carnaval (carnevale – festival da carne). O transporte dionisíaco[2] faz o subjetivo se esvaecer. Cantando e dançando o homem desaprendeu a andar e a falar, e está aponto de sair voando pelos ares. O homem caminha agora extasiado e enlevado. Na arte o sujeito em fading caminha acéfalo ao comando das batidas da pulsão. “A força artística revelou-se sob o frêmito da embriaguês”. A arte advém quando o sujeito se esvai diante do objeto; “o homem não é mais artista, tornou-se obra de arte”.
O Culto a Dionísio: origem da tragédia
A tragédia desenvolveu-se a partir do culto a Dionísio com as orgias dionisíacas passando pelo ditirambo dionisíaco (canto com coro e solista) onde os participantes são incitados “à máxima intensificação, segundo Nietzsche, de todos as suas capacidades simbólicas”[3].
No culto com as festas se alcançava o “júbilo artístico” e se presentificam a “maravilhosa mistura dos afetos do entusiasta dionisíaco” constituindo o “fenômeno segundo o qual os sofrimentos despertam o prazer e o júbilo arranca do coração sonidos dolorosos”. Na música dionisíaca “da mais elevada alegria soa o grito de horror ou o lamento por uma perda irreparável”[4].
Dionísio é o deus da transformação e da duplicidade e da fragmentação trazendo em seu mito vida e morte conjugados. Filho de Zeus e Perséfone foi esquartejado pelos Titãs e em seguida, Atenas reuniu seus pedaços e os entregou a Zeus. O costurou em sua coxa e proporcionou-lhe um segundo nascimento. Foi então que entregou a Sileno, sátiro sábio, para ser seu preceptor.
Deus despedaçado, símbolo da abolição do sujeito por ter sido morto e depois revivido, Dionísio é o símbolo da ambigüidade e duplicidade. Deus da transformação, ele é o deus do teatro. Sobre aquele que educou Dionísio, Sileno, relata-se, segundo Nietzche, que à pergunta do rei Midas que queria saber do sábio o que era o melhor e o preferível para o homem, respondeu: “Antes não ter nascido e nada ser. Depois disso o melhor é morrer o mais rápido possível”. É o que encontramos cantado pelo Coro de Édipo em Colona, comentado por Lacan: Me Funai! Antes não ser¹
O apolíneo, como defesa ao dionisíaco
Diante dos temores e horrores do existir, os gregos criaram a cultura apolínea da beleza com o louvor à vida com harmonia e prudência instaurando a medida, a observação das fronteiras do indivíduo. Ao lado da necessidade estética da beleza colocaram a exigência do “conhece-te a ti mesmo” e o “nada em demasia”, frases inscritas no templo de Apolo, em Delfos.
Dionísio com Pan e Eros
Em A Origem da Tragédia no Espírito da Música, Nietzsche associa a música trágica ao culto de Dioniso que, dentre os gregos, é o deus “despedaçado pelos Titãs”, para eternamente retornar em formas individuadas. Este é o significado permanente do espetáculo trágico: o despedaçamento de uma totalidade em formas individuadas, que são os outros deuses e as “personagens mascaradas”. A música é o elemento dionisíaco da tragédia.
Da totalidade à fragmentação
Óidipous traz o destino em seu nascimento:a auto-destituição de si mesmo enquanto sujeito, configurada pelo horizonte inexorável da morte, na medida em que ele foi vítima da tentativa de assassinato da parte de seus pais. Eis o caráter universal do trágico, pois, afinal, todo ente vive a experiência da geração e da corrupção, do erguimento e do desvanecimento e, sobretudo, das circunstâncias que fazem dele mesmo um ente fugaz, destacado da totalidade.
Optei por trabalhar musicalmente a tensão entre totalidade e fragmentação ou, em termos filosóficos, a tensão entre constância e devir. Este procedimento poético é tradicional. Está presente em obras de todos os períodos estilísticos, destacadamente na música grega da antiguidade, no barroco e no romantismo tardio. Entendo que a generalidade deste procedimento ocorre devido à conexão entre arte e ser: a arte, enquanto princípio de articulação do pensamento, reivindica que reconheçamos o que é e o que estar por vir.
A técnica
Para criar a sensação de totalidade e/ou constância recorri às seguintes técnicas: 1) produção em midi de melodias minimalistas, pautadas na repetição, reiteração e variação de elementos da rítmica grega e indígena, assim como da constante aparição de um motivo melódico, que perpassa a trilha sonora em seu conjunto; 2) acentuação da sensação de circularidade do tempo, através do retorno constante às estruturas musicais determinadas, reconhecíveis pelos ouvintes; 3) predominância de timbres, cuja proveniência é facilmente reconhecida, tais como timbres produzidos por sinos, madeiras e chocalhos.
Notação de música grega (melopéia) em stela grega (museu de Delfos)
Em contrapartida, para criar a sensação de fragmentação e devir trabalhei com elementos de caráter aleatório, quais sejam: 1) gestos musicais de altura, ritmo e timbre não determinados; 2) gestos musicais apresentados fora de uma periodicidade temporal; 3) combinação entre sons contínuos, isto é, sem alturas definidas e sons discretos, isto é, aqueles que reconhecemos como notas.
A música de Óidipous é trágica na medida em que é produzida a partir de um amálgama essencialmente conflituoso: música produzida no computador e música interpretada em cena. Ela traz à audição tempos mensurados e não mensurados, sons determinados e não determinados, elementos rítmicos conflitantes, timbres de origens diversas, que nos situam em diversos pontos de nossa memória musical. Para sua realização utilizamos instrumentos de diversas origens: barrocos, indígenas, tibetanos, rurais, etc..
Procurei fazer uma música para Óidipous que fosse trágica na sua relação com o texto. Se, por um lado, sua estrutura constante oferece um apoio para a fluidez da representação teatral, suas estruturas aleatórias buscam expressar as reações que o texto solicita. Trata-se de uma música de cena, que comenta o texto, no entanto, sem explicá-lo: falta-lhe signos remissivos para tal. É nesse último aspecto que a música se insere na trama como mais uma personagem; justamente aquela que de perto assiste o desenrolar da trama e instaura-se afetivamente como questão.
Teatro de Delfos
Dizem que o mundo está para além de mim? E que eu já estou ultrapassado. Parakalo! (Por favor!) O que chamam do "para-além de Édipo"está em meu próprio fim inscrito desde minha concepção. Nasci junto com minha morte. E alguém é diferente? Meu para-além escapa ao deciframento. Lá está ele! Lá onde a Erínias bebem o sangue da vingança das vítimas de Tânatos; lá no reino da dor de existir, no silêncio das tumbas. Onde cego, alquebrado, dejeto da civilização grito: Me funai! Antes não ter nascido! Até o para-além de mim, a mim é referido.
Não me venham com interpretações oportunistas dizendo que o mundo mudou e que eu sou uma invenção feita sob medida por um habitante de uma Viena fim de século! Sobreviverei, graças ao senhor, Dr, Freud, a todos aqueles que dizem que não sirvo mais para nada.Como apagar a marca de castração, que o senhor captou, de meu ato de furar meus olhos? Cuja angústia é o sinal da realização de um gozo atingido para além do possível? É a marca de que ali o olhar se fez presente trazendo à luz o que não podia ser visto. Quando eu via, nada enxergava, quando abri os olhos à verdade da castração, ela os arrancou de minha visão. E pude então saber. Mas que travessia dolorosa foi-me necessária para chegar a esse saber!
Ao recusar-me eles enlouquecerão, pois estarão recusando o complexo lei-transgressão-castração chamado pelo meu nome. Retirem-me de cena e a psicose advirá: seja no imperial-terrorismo paranóico, seja na desagregação capitalista esquizofrênica.
Ao abrirem esta carta, no dia 6 de maio de 2006, o senhor terá uma legião de inimigos, como sempre teve aliás. Mas agora seus detratores, ameaçados, usam de tudo para denegri-lo e desconhecer minha existência trágica em cada um deles.
E isso em nome de quê? Da ciência, da religião e da ideologia capitalista? Sim, rejeitam a fragmentação dionisíaca da pulsão em nome do ideal, do comando e da tirania do Um. Esse Um tão entediante e mortificador. Recusam meu daimon, que o senhor chamou de pulsão, que na verdade é o daimon deles. Isso pouco os interessa e quando ele se manifesta tentam anulá-lo com entorpecentes. Parabéns, Doutor Freud por resistir a tudo isso e manter vivo o paradoxo da coexistência de daimon e logos.
A Esfinge (Museu de Delfos)
É verdade, não ouvi de Tirésias, o adivinho cego-que-vê: “Sabes ser o horror dos teus? Com o terror nos pés, a maldição mater-paterna, açoite duplo, há de expulsá-lo daqui”. E a ortovisão me anunciou meu triste fado. Eu salvador da polis era seu destruidor. Movido pelo desejo de saber – o terá sido minha paixão da ignorância ?– não me detive – nem mesmo quando minha mater-esposa gritava: “encerra a busca!”. Não o destino não a previra: a busca foi escolha minha. Não recuei diante de obstáculo algum até ver o impossível. O senhor teve a coragem de buscar-me em cada ser e, amorosamente, levá-lo, a saber o que já é dado, e a poder transformar a infelicidade do destino no efeito trágico do entusiasmo pelo saber.
Parabéns, Doutor Freud.
Assinado: Édipo
Obrigado a todos pela atenção,
Antonio Quinet