terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Atualidade de Laios

O Tempo de Laiusar


O pai real do gozo: Édipo, Laio por Freud e Lacan

de Antonio Quinet

Estamos em tempos de Pai real. A figura representativa do Pai simbólico, aquele que une o desejo com a lei, que barra o gozo devastador da Mãe, o pai normativizador que protege e apazigua, esse pai está desaparecendo na aletosfera espessa produzido pela fumaça do desmatamento da subjetividade no mundo contemporâneo. De nada adianta lamentar o declínio da autoridade paterna, acusar o pai de humilhado, impotente e desdentado e receber o que todos já sabem que quem é o escravo da família é o papai.

A figura paterna que tem emergido de seu obscuro anonimato é o Pai real, o grande fodedor, como diz Lacan, o pai sacana fora da lei, gozador, que trata os filhos como objeto.




Temos como exemplo recente o austríaco Joseph Fritzl mantendo em carceragem sua filha por 18 anos nela engendrando seus próprios filhos. E o pai violento, possuído por uma ignorância feroz como o pai de Izabela que auxiliado pela madrasta num ato insano a atirou pela janela abaixo.




Nossa sociedade contemporânea parece viver o mito de Totem e Tabu às avessas: o desmoronamento da Lei simbólica deixa aberto o caminho para o retorno do cadáver vivificado do pai morto, o Urvater, figuração do Pai real, como pai gozador da horda primitiva, tirânico abusador e assassino, que é chamado por Lacan de pai Orangotango.


crânio de orangotango macho pongo pygmeo

O assassinato do pai e sua substituição simbólica por um totem, fez Freud dizer que no inicio era o ato – no inicio da civilização era o ato. Nesses tempos de barbárie contemporânea o que faz aparição não é o ato dos filhos impondo a Lei e sim os atos desmedidos do Pai real que faz a sua lei – lei do gozo – fora de qualquer Lei do campo do Outro.

O mito de Édipo à luz do Pai real do gozo
Laio e sua desmedida
Retormemos o mito de Édipo à luz do pai real e de Totem e Tabu. Quem é o pai de Édipo? Na verdade ele teve dois pais: o pai biológico Laio, rei de Tebas, que ele não conheceu e sem saber o matou, e Pólibo, que o criou em Corinto. Mas é Laio, que aparece como Pai real cuja desmedida constitui a Até, a desgraça, a maldição dos Labdácidos e que será transmitida e paga por três gerações: o próprio Laio, Édipo e seus filhos Etéocles, Polinice, Antígona e Ismênia. Laio é filho de Lábdaco, rei de Tebas e quando este é assassinado, ele é levado aos 2 anos de idade para a Frígia sendo recebido pelo rei Pélops que o adota. Laio tem também dois pais. Pélops tem um filho Crísipo o qual, ao chegar na adolescência, é entregue a Laios para educá-lo. Este se apaixona pelo menino e o rapta e Pélops lança, então, a maldição: "se tiveres um filho ele te matará e toda tua descendência desgraçada será". Daí vem a maldição e toda a história cujo desdobramento está na peça de Sófocles da qual vocês assistirão minha versão após esta mesa. A desmedida de Laios não foi ter tido relações com Crísipo, pois a relação pedagógica erastes-erômenos era aceita como uma relação pedófila normal de amante-amado, professor-aluno na qual o saber não é transmitido sem Eros. A hybris de Laios foi tê-lo seqüestrado e com isso ter rompido as leis da hospitalidade e traído aquele que o acolhera. A maldição de Pelops para Laio é o que o faz furar os pés de seu filho Édipo e mandar matá-lo.
Na minha interpretação, Édipo não quis saber do crime do pai e nem de sua tentativa de assassinato. Ele, em sua investigação, foi até o ponto em que descobre que ele matou o pai e que a mulher com quem está é sua mãe. Mas não vai, além disso pois não quis saber da maldição herdada e da desmedida paterna.

Laiusar
Se compararmos o desenvolvimento trágico da investigação de Édipo sobre sua origem, como o fazem Freud e Lacan, com o percurso de uma análise podemos dizer com Lacan que se Édipo tivesse tido tempo de laiusar ele talvez não teria tido o desfecho que teve.
Lacan introduz esse comentário sobre a peça de Sófocles Édipo Rei no seminário RSI quando aponta que o furo do simbólico, correspondente ao recalque originário, é a morte. A peste, diz Lacan, é isso: a morte é para todos. "É preciso que a peste se propague em Tebas para que esse "todos" cesse de ser de puro simbólico e passe a ser imaginável. É preciso que cada um se sinta concernido pela presença da peste". Esta é portanto, o real do furo do simbólico imaginarizado – peste que é o desdobrametno da calamidade provocada pela Esfinge, outra figura da morte e da Até, desgraça, dos Labdácidas. Édipo, continua Lacan, só matou o pai por não ter se dado o tempo de Laiusar. Se o tivesse feito, o tempo que fosse preciso, teria sido o tempo de uma análise, pois era para isso que ele estava na estrada" (Lacan, RSI, lição de 17/12/1974)
Laiuser em francês é derivado de lalue que significa discurso, fala, peroração no jargão das Escolas. User em francês significa utilizar e também gastar,usar até acabar como uma sola de sapato que de tanto se usar vai gastando e acaba. Na análise é preciso tempo para usar e gastar o pai real. Tempo para se ir para além do desejo de salvar o pai, defrontar-se com seu crime e vencer a ordem de ignorância feroz.

Salvando o pai... para não ver seu crime
Passando do mito à estrutura: é preciso tempo para se haver com o impossível do furo do simbólico lá onde jaz o gozo do pai rela imaginarizado uma vez que pai real e pai imaginário tendem a ser imiscuir um no outro. É o pai que a parece como abusador e criminoso na histeria e na neurose obsessiva cujo gozo se sintomatiza no filho. É o pai de tal paciente do hospital que a espancava quando ainda bebê ela chorava e que hoje seu sintoma é um choro sem fim e sem razão; ou o pai militar que colaborou com a ditadura militar de tal outra analisante que faz de seu corpo um palco de torturas, ou o pai fiscal do imposto de renda de um obsessivo que se enriqueceu ilicitamente deixando para o filho a dívida do eterno desemprego.
O neurótico prefere salvar o pai do que se deparar com sua canalhice; ele prefere sofrer com seu sintoma do que saber do crime do pai e suas conseqüências. Prefere, como Édipo, se sentir culpado de seus atos do que desvelar a desmedida do gozo paterno. Deparar-se com o real do pai é confrontar-se com a conseqüência da falta radical do Outro, ou seja, o gozo mortífero para além desamparo. E para isso é preciso Laio-usar – gastar o Laio de cada um.


O espectro do Pai
A posição do pai real, segundo Lacan, está articulada em Freud como um impossível e não é surpreendente, diz ele, que encontremos sem cessar o pai imaginário. É uma dependência necessária, estrutural. (sem. XVII). A imaginarização do pai real tem seu paradigma no ghost - o morto vivo.


Desenho de Gordon Craig para a cena do fantasma de Hamlet Pai (1908)

É o que vemos na figura do fantasma do pai: o espectro do cadáver vivo, como o pai do Homem dos ratos que apesar de morto lhe aparece vivo no meio da noite e o pai de Hamlet que além de aparecer tem fala. O espectro é o habitante dessa zona entre-duas-mortes, campo de gozo, do Hades ao inferno, onde penam as almas pecadoras e criminosas à espera da segunda morte. "Sou o espírito de teu pai e vivo errante noite e dia até que a podridão de meus crimes seja queimada e purificada" – diz o pai de Hamlet no início da peça. As mitologias criaram esse habitat para o pai real. Mas quem queima é o filho. Ele arde por causa dos pecados do pai, como diz Lacan (Seminário XI). Pai, não vês que estou queimando por causa de teus pecados? E o espectro do pai de Hamlet lhe diz que "a menor de minhas faltas angustiaria tua alma, gelaria teu jovem sangue e teus olhos saltariam das órbitas como os astros de suas esferas..."
Os crimes do pai são de um real que não cessa de não se dizer para o filho e no entanto insiste e se tornam um sintoma do filho – como a dívida do pai do homem dos ratos e o gozo oral do pai de Dora.
O espectro recobre, mascara, vela e também desvela o pai real ou o real do Pai. O espectro é a encenação da articulação entre o pai real e o pai imaginário. É o que se encontra, como diz Marc Strauss, na fantasia de Bate-se numa criança em que as cenas vêem ao sujeito petrificar, cristalizar um excesso como um ciframento primeiro, uma representação do inominável do gozo (Tréfle, maio 1999, nº 2, p. 48). Não importa se é efetivamente do gozo do Pai que se trata ou do gozo imaginarizado do Pai e sim do dispositivo que o sujeito emprega para endossar um gozo que se apresenta a ela como exterior, vindo do Outro.

"É proibido ver a nudez do Pai"
O pai do crime não é o pai da lei, o Nome-do-Pai. O pai estuprador, ladrão, assassino, são figuras do pai imaginário que do fórum à hybris do pai: o gozo desmedido. A desmedida do pai com seu real é aquilo que o filho, com força, não quer saber. O homem é como Édipo, filho de laio – ele não quis saber da desmedida paterna. No lugar do pai real existe, diz Lacan, a ordem de uma ignorância feroz (Seminário XVII, p. 159).
Há uma interdição: "Está excluído que se analise o pai real, diz Lacan em Televisão, o melhor que se pode é o manto de Noé, quando o pai é imaginário" (Télévision, Seuil, p.35).

O manto de Noé - Chagall

Um dia Noé se embriagou e ficou nu em sua tenda. Um de seus filhos, Chan, o viu e foi chamar os outros dois que, ao chegar, taparam os olhos e o cobriram com um manto para esconder a nudez paterna e saíram de costas. Estes se salvaram e a toda a descendência de Chan foi amaldiçoada. O que Noé fazia nu na tenda, jamais saberemos, mas sem dúvida era algo da ordem de um gozo que filho algum poderia em tempo algum ver ou saber. Toda nudez do pai será castigada... no filho.

O filicídio de Abraão

O pai que mata o filho é abordado por Lacan a partir do sacrifício de Isaac por seu pai Abraão comentado por Kierkegard descrito em temor e tremor em que descreve quatro variações do mito que se diversificam a partir do ponto em que Deus diz a Abraão:


"Sacrifica teu filho, mate-o!"


O sacrifício de Abraão - Caravaggio

É na primeira que ele descreve a tentativa de filicídio.. Abraão agarrou Isaac pelo peito, jogou-o no chão e gritou: "Estúpido! Crês tu que sou um pai? Não, não sou teu pai. Sou um idólatra! Crês que estou obedecendo a um mandato divino? Não. Faço isso somente porque me dá vontade e porque me inunda de prazer!". Abraão aparece como o pai real que diria: "Vou te matar por puro gozo!". "Então Isaac exclamou angustiado: 'Deus de Abraão tende piedade de mim! Sê meu pai, já não tenho outro neste mundo!'. Abraão se dirigiu a Ele, dizendo: Senhor onipotente receba minha humilde ação de agradecimento, pois é mil vezes melhor que meu filho acredite que sou um monstro do que perca a fé em ti" (Kierkegaard, 2004, p. 22). O pai monstro, capaz de matar o filho nem que seja por amor a Deus, é o que é transmitido ao filho como seu pecado.
É a propósito dessa passagem de Kierkeggard que Lacan diz no Seminário XI que o que se herda é o pecado do pai. Isaac herda o crime do pai de ter desejado matá-lo. Eis a herança de Isaac e também a de Édipo.

Óiidpous, o pé da letra

Diferentemente de Abraão, que no mito judaico-cristão recebe a ordem de Deus de matar o filho predileto como prova de seu amor, Laios ele mesmo decide matar seu filho Édipo para evitar que este o mate segundo a maldição oracular, fura-lhe então os pés e o entrega a um pastor para ser jogado no lixão do monte Citéron.
O Urvater de Totem e tabu, Noé com sua nudez, o Deus de Abraão, Yavé com sua ignorância feroz e Laios são figuras imaginárizadas e míticas do pai real.
Édipo carrega em seu nome e em seu corpo a marca do crime do pai. A ferida causada por seu pai ao furar-lhe os tornozelos para pendurá-lo como um animal e expô-lo e o edema que ocasionou foi o que lhe deu o apelido de Oidipous, de oiden, edema nos pés. O apelido virou nome próprio e a ferida deixou-lhe coxo. Seu pé carrega um saber (oida) sobre o crime do pai do qual Édipo não quis saber. A esfinge, como aponta Jean-Pierre Vernant, enunciava o enigma dos pés e equivocava com seu nome: "tetrapous, dipous, tripous" disse ela para Óidipous que ao dizer o homem como resposta suprimiu, como diz Lacan, o suspense da verdade. A verdade sobre a castração e o gozo de Laios – o pai real se manifesta em Édipo como aquele que determina a Até família dos Labdácidos do qual ele e sua descendência são herdeiros e também se manifesta como ignorância feroz: mandamento superegóico de não-saber. Eis porque para além do desejo de saber que o impulsiona a querer investigar sua origem, Édipo é possuído pela paixão da ignorância. Aliás, não será a força dessa paixão que faz Lacan dizer que finalmente não existe desejo de saber algum?
O que Édipo ignora é que seu nome é uma letra que cifra um gozo, o gozo do Outro paterno: o "x" da função do sinthoma, ou seja, uma escrita do gozo do Inconsciente.

Óidipous, o que é tetrapous, dipous, tripous?

Édipo e a Esfinge - Gustave Moreau

Óidipous, Pé Inchado é o signo do gozo do Pai que desejou matá-lo e do qual ele não quis saber; Óidipous, Pé-que-sabe é a letra que confere a marca do saber do real, saber do crime do pai da origem da Até dos Labdácidas - móvel do filicídio que faz de Édipo o objeto rejeitado pelo Outro – é o selo de seu ser de dejeto. Rejeitado pelos pais e, no final da peça de Sófocles, ao se apagar como sujeito, pelo Outro social, que representa Tebas. Óidipous não acredita em seu ser de synthoma, não acredita que ele seja capaz de um dizer, pois ele não quer saber que se trata aí de uma cifra do gozo. Eis porque erra em sua ignorância e fica escravizado pelo gozo do Pai, servo do destino. Édipo está preso à ignoerrância.
O crime do pai real como gozo desmedido é transmitido como erro trágico que o filho carrega como Óidipous com seu sintoma no pé.

A análise: tempo de pensar com os pés
Por um lado encontramos a herança da castração que se transmite de pai para filho: Lábdaco , o manco, Laio, o torto, e Édipo, pé inchado. Por outro lado, há a transmissão da maldição que Édipo herda como lote do gozo do pai inscrito em seu nome e seu corpo. Essa letra é o nome do gozo do pai real. O nome que condensa o gozo inscrito no enigma da Esfinge que Óidipous não ouviu.
O tempo da análise é o tempo de laiusar: tempo de laio-ousar – tempo de ter a ousadia de se confrontar com o crime e o gozo desmedido e ectópico do sujeito, que ele localiza no lugar do vazio do Outro – lugar topológico da desmedida do Pai real. É preciso tempo de peroração para o sujeito gastá-lo o suficiente para que se revele o que é: um nada esvaziado de gozo. O tempo de laiusar é o tempo de olhar para os pés, ouvir os pés e pensar com os pés.


Texto apresentado no V Encontro Internacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano em São Paulo, julho de 2008.

Um comentário:

  1. Odipous o Filho de laios, é um exercicio teatral interessante, honesto, com uma releitura clara e objetiva. Dando ao espectador o sentido de continuidade, linha de tempo, não produzindo duvidas quanto ao que se assiste. Claro tem falhas, excessos, mas isso é visão de cada um, no geral a peça se apresenta de uma maneira correta e não se pode cobrar da trupe de Quinet uma exibição fora do comum, pois pelo que vi e entendi, nem todos são atores profissionais. Vale sim ir ao SESC compreender o que a Senhoura da Critica teatral não gostou,até para que se forme a real opinião. vale sim assistir, pq o grupo e o diretor estão lá, dando a cara a tapa, acertando ou errando, de maneira corajosa e bem intencionada.
    Teatro é isso: Amar ou Odiar! Bárbara não gostou, mas eu gostei!

    Wladimir Duarte
    Empresário,Músico e Produtor Cultural/Eventos
    wladuarte@gmail.com

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