quinta-feira, 7 de maio de 2009

A ignoerrância e o Inconsciente

Gloria Sadala

participação no debate após a peça

29/03/2009

Gloria Sadala: – É um prazer muito grande estar aqui assistindo e participando dessa obra de Antonio Quinet e, mais ainda, porque a peça tem uma articulação com o nosso Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade, da Universidade Veiga de Almeida, como resultado da pesquisa Psicanálise e teatro. E é um prazer também estar com Marco Antonio, nosso colega e amigo. Marco Antonio e Antonio Quinet têm uma contribuição já inestimável para a psicanálise.

O Inconsciente é o destino

Hoje, estava preparando um trabalho e me deparei com um texto de Lacan, nos Escritos, “A Coisa freudiana”, que me lembrou a peça Óidipous, filho de Laios. Eu já assisti na estréia e assisti também em outros momentos anteriores. Anotei o trecho que me lembrou da peça, quando Lacan diz assim:

“Acreditas agir quando te agito ao sabor dos laços com que há, com teus desejos, assim, estes crescem como forças e se multiplicam em objetos que te reconduzem ao despedaçamento de tua infância dilacerada. Pois bem, é isso que será teu festim até o retorno do convidado de pedra que serei para ti, posto que me evocas.”

A peça fala, por um lado, desse convidado de pedra, do significante que determina um sujeito (a linguagem do Inconsciente que na peça é representada pelo oráculo) e que é a garantia da indestrutibilidade do Inconsciente. São as marcas para além da significação – elas representam a garantia de que uma carta chega sempre ao seu destino. Por outro lado, a peça do Quinet mostra também que há sempre uma margem de jogo, deixada pelo próprio significante, e que torna possível a psicanálise.

A "ignoerrância"

Para falar do eixo condutor da peça vou usar um termo do próprio Antonio Quinet que empregou numa Jornada nossa: a ignoerrância. Vejo várias palavras aí condensadas, mas vou ressaltar apenas duas: ignorância e errância. Errância é o não querer saber sobre o inconsciente. Errante, diríamos que é aquele que quer burlar a castração, e errância, é equivalente à paixão pela ignorância. Vocês devem ter observado que este termo aparece aqui no texto da peça em alguns momentos. Qual é o paradigma dessa ignorância? É o recalque.

A música e o não saber

Eu disse para o Quinet que hoje eu gostei mais ainda da peça. Pude, por alguma razão, apreciar mais a música. Deixei a música penetrar ainda mais em mim e isso se juntou a tudo que eu estava acompanhando. Algumas coisas se ressaltaram hoje para mim. Ficou mais evidente ainda essa ênfase do não saber. Estamos mais acostumados a ter uma leitura da peça Édipo Rei como um Édipo em busca de saber sobre a sua origem. O não querer saber fica bem evidenciado na peça pelo fato de Jocasta também estar do lado do não saber. Mesmo quando Édipo quer saber. Há dois tempos: um primeiro tempo na peça em que a ênfase é nesse Édipo que não quer saber. Mas depois, quando ele. tem algum contato com a sua verdade, ele não pode mais se desligar dela. É o segundo tempo, o de um Édipo que quer saber, que vai atrás desse saber, mesmo quando Jocasta tenta lhe convencer do contrário.

Tirésias e a verdade como mulher não-toda
Muito interessante também Tirésias estar representado na peça como mulher. Isso tinha me escapado das outras vezes que eu assisti à peça.. Pude pensar que Tirésias é um adivinho, um sábio, que ele é aquele que tem a verdade. Parece-me que essa ligação com a verdade levou Quinet a colocar Tirésias como mulher. Pois a verdade tem a marca de não-toda, tal como a mulher.

O grego
Achei muito interessante também, como já tinha percebido nas outras apresentações, essas palavras em grego enigmáticas e que nos causam questionamentos. A gente fica morrendo de curiosidade para saber o que querem dizer. Lembrei agora da cena da refeição totêmica em que todos falam: “Io Pã, Io Pã”. O que significa?

Quinet: – “Io” é uma saudação grega, igual a oi, e “Pã” é um divindade, o sátiro, que é é considerado o símbolo da sexualidade. É um animal silvestre metade homem e metade bode. Essa homenagem a “Pã”se dá naquele momento em que Óidipous indica que mais do que saber quem é seu pai e sua mãe ele é mesmo diz assim: “filho da sorte”, paida dês tycke. Aí, no coro, responde que é filho de Pã, e também de Dionísio, o que lhe confere uma genealogia divina nesse momento, que é o único momento alegre da peça.

Gloria Sadala:

A cena da refeição totêmica
Pois bem, a representação da refeição totêmica mostra, de forma bastante clara, a passagem do pai morto para a lei. Uma passagem muito bonita! (Trata-se da referência ao mito descrito por Freud em Totem e tabu em que os filhos matam o pai, em seguida o representam por um animal, como símbolo da lei, que é sacrificado e comido em ritual periódico).

O que fazer com as marcas recebidas?
Podemos entender Óidipous como um sujeito dividido entre histórias e tempos. Entre duas histórias: a de seus pais e a sua própria. E também entre dois tempos: o tempo até Corinto, antes do encontro com a verdade e, posteriormente, em Tebas. Óidipous somos todos nós, marcados pelo destino, marcados pelo grande Outro (O Inconsciente ou os deuses da Grécia antiga), como a peça mostra. Por mais que Óidipous tenha fugido do saber em um primeiro tempo, essa determinação inconsciente, representado pela maldição do oráculo, marca, o tempo todo, sua história. Todos nós também estamos marcados pelo grande Outro: estamos às voltas com o que fazer com as marcas que recebemos e identificamos no tempo de vida que temos pela frente ou no tempo de vida que nos resta.

A transcriação e a análise
Gostaria de tocar em mais um ponto: a transcriação. O programa da peça nos diz que a transcriação é uma tradução criativa com liberdade do autor, que a recria e transforma o texto original em uma obra sua. A análise é isso: uma transcriação, ou seja, um apropriar-se da sua história, das suas determinações inconscientes de modo a poder transformar alguma coisa delas na própria vida.

Nenhum comentário:

Postar um comentário