sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

A história de Édipo Rei pelo avesso

Édipo, o objeto

Em sua transcriação Óidipous, filho de Laios, Antonio Quinet introduz na estrutura da tragédia de Sófocles, Édipo Rei, o tema da maldição herdada por Édipo de seu pai Laios. Trata-se de maldição recebida por Laios, após ter se apaixonado e raptado Crísipo (jovem filho de Pélops que era seu anfitrião e tutor), de que ele, Laios, seria morto por seu próprio filho e sua descendência seria desgraçada.
Esse tema está presente em Ésquilo, na trilogia de trágédias Laio, Édipo e Sete contra Tebas assim como na peça satírica que as acompanhava , A Esfinge, das quais apenas Sete contra Tebas chegou até nós.
Sófocles com Freud
Em Édipo Rei de Sófocles (que tudo indica não fazer parte de uma trilogia) há uma supressão do tema da maldição paterna que Édipo herdou. E a desmedida do pai está velada. O que Sófocles acentua é a descoberta feita por Édipo de que ele matou o pai e casou com a mãe.
Freud toma a peça de Sófocles, centrada nesses dois crimes, para estabelecer o complexo de Édipo articulando o desejo pela mãe com o desejo de matar o pai, obstáculo à realização do desejo incestuoso.

Ésquilo com Lacan

A dívida simbólica
Em Óidipous, filho de Laios, a partir de Ésquilo e de Lacan, Antônio Quinet coloca a ênfase na herança simbólica inconsciente (a transmissão da história paterna) que determina os atos do sujeito Édipo. Trata-se da dívida simbólica que os filhos pagam pelos crimes dos pais a nível inconsciente.

O desejo do Outro
Quinet acentua também a questão do desejo dos pais de Édipo em relação ao filho , principalmente o desejo de Laios de matá-lo.
Ao utilizar a teoria do " objeto a " de Lacan, Quinet mostra o lugar de Édipo como o dejeto do desejo do Outro: ele foi vítima do filicídio, seus pais tentaram matá-lo quando pequeno. E mais tarde, depois de ter sido rei, ele volta a ser um dejeto, expulso de Tebas. Édipo experimentou, como rei e esposo da mãe, o lugar de objeto valioso, objeto de gozo dos tebanos todos e foi a causa da prosperidade e da riqueza.

De objeto precioso a dejeto
Assim Édipo experimentou as duas valências do sujeito como objeto do Outro: objeto precioso, desejado, amado e importante e, por outro lado, dejeto, escória, rebotalho. Assim, foi utilizado na transcriação da peça de Sófocles, a indicação de Lacan de que o herói da tragédia grega é o "objeto a."

De sujeito a objeto
Se em Édipo Rei ,de Sófocles, vemos Édipo como sujeito do desejo (mortífero e sexual), em Óidipous, filho de Laios, vemos Édipo como objeto de desejo (mortífero e sexual).
Se em Édipo Rei, de Sófocles, vemos o heroi levado pelo desejo de saber (sua identidade e sua origem), em Óidipous, filho de Laios, ele está cego pela paixão da ignorância (de saber de sua herança simbólica).

Ela se esfinge de peste
Em Édipo Rei, de Sófocles, Édipo decifra o enigma da Esfinge.
Em Óidipous, filho de Laios, Óidipous acerta por sorte o enigma da Esfinge, mas esta não morre, e volta transformada em peste.
Óidipous, filho de Laios mostra que o enigma da Esfinge é o próprio enigma do Édipo. O homem em questão é o próprio Édipo.













quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Catarse e desejo

O espectador de Édipo Rei

A tragédia, segundo Aristóteles, é a mímesis (representação ou imitação segundo diferentes tradutores) de uma ação importante e completa, de certa extensão; num estilo tornado agradável pelo emprego separado de cada uma de suas formas, segundo as partes; ação apresentada e não com a ajuda de uma narrativa mas por atores,, e que suscitando a compaixão e o terror tem por efeito obter a catarse dessas emoções.[1]



Geralmente, a "catarse'", é entendida como "purgação" - uma eliminação, dentro de uma terminologia médica. Porém, a tragédia ao suscita e faz a "catarse" da compaixão e do terror. Será que ela nos livra desses sentimentos, ou ao contrário, nos faz experimentá-los de tal forma que conseguimos lidar com eles através da arte?

Não podemos entender catarse no sentido de eliminação pois não se trata de eliminar o terror e a compaixão como se elimina a excreta na urina. Ao desmedicalizar o termo catarse descobrimos seu verdadeiro sentido: a tragédia purifica esses afetos e deliberadamente deixa-os evidentes, claros, puros.

A tragédia radicaliza: ela visa salientar o sofrimento do espectador, ela quer que ele o sinta puramente, delineadamente.



A identificação do espectador
O espectador sente, por um lado, a compaixão, a pena do herói e do que está acontecendo com ele através da simpatia (ter o mesmo phatos) e, por outro lado, horror através da identificação com aquilo que pode acontecer com ele.
O espectador sent horror, ao se colocar no lugar do herói da tragédia. E sente pena, ao se distanciar dessa posição, porém não sem negá-la.

É a partir dessa identificação através do horror com o herói da peça de Sófocles que Freud estabelece o complexo de Édipo. Segundo ele, o espectador se identifica através do desejo. Ele identifica no herói tanto o desejo de matar o pai quanto o de fazer sexo com a mãe. Eis o que provoca o efieto trágico da tragédia de Sófocles no espectador.




Não é só o horror e sim sua superação: a identificação do espectador com o herói se dá pelo desejo inconsciente. O prazer advém do gozo obtido por satisfazer o desejo proibido que se expressa na arte trágica de Sófocles. É o gozo cujo conteúdo mítico tem dupla vertente: a vertente sexual (dormir com a mãe) e a vertente assassina (matar o pai). Na tragédia de Édipo Rei, o espectador pode gozar sentado em sua cadeira na platéia realizando através do herói aquilo que lhe é impossível. É a catarse dos desejos inconscientes.

Édipo Rei é o Inconsciente em Cena.

Freud não extrai o complexo de Édipo do mito de Édipo e sim da tragédia de Sófocles e do efeito trágico provocado no espectador.





[1] Aristóteles, Arte retórica e Arte Poética, “Capítulo VI” (de Arte Poética); da tragédia de suas diferentes partes”, Edioro, p. 248, sem data.
[2] Freud. Totem e tabu, v. XIII, 1974, p. 185.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Freud e o gozo da tragédia


A representação teatral, segundo Freud, não poupa ao espectador de uma tragédia “as impressões mais dolorosas que no entanto podem levá-lo a um alto grau de gozo”[1]. O termo aqui empregado por Freud não é Lust (prazer) nem Befredrigung (satisfação) e sim Genuss, que podemos traduzir por gozo.

O gozo do espectador da arte da tragédia é um dos exemplos que Freud avança ao propor um gozo para-além do prazer, um gozo que conjuga prazer e dor, onde Eros se conjuga com a pulsão de morte. No entanto, diferente dos casos em que prepondera o sofrimento (o sintoma), a destruição (a guerra) e a mortificação do sujeito (o masoquismo), na representação teatral há uma superação da dor e a valência do gozo se positiva trazendo ao espectador um mais de prazer.

Esse gozo é um prazer para-além do "princípio do prazer" pois não obedece ao limite entre prazer e desprazer. O gozo artístico, presente nas tragédias, é uma transformação, ou até mesmo uma superação da dor que, no entanto, não a elimina totalmente.

Essa superação se encontra também presente no caso das crianças que pedem que contem para elas estórias de terror.

O Jogo do Fort-Da

Freud dá como exemplo desse tipo de gozo na brincadeia infantil, que ficou conhecida como o "jogo do fort-da", no qual uma criança em seu berço lança para fora dele um carretel amarrado num barbante ao som de "ooooo" querendo dizer FORT (longe) e em seguida puxa para si o carretel de volta gritando "aaaaaa", ou seja, DA (perto). Na repetição desse jogo, a criança extrai um gozo para-além do princípio do prazer.

A representação da perda

Para Freud, com essa brincadeira, a criança está representando - no sentido mesmo de representação teatral - o afastamento e a reaproximação da mãe. Esse ato é designado por Freud pelo termo Spiel, que, como to play em inglês, significa jogo, brincadeira e também representação teatral. E ela pode repetir essa brincadeira inúmeras vezes. É uma forma de encenação da dor da perda da mãe e do júbilo de sua volta. É também uma forma de elaborar a perda através do jogo dramático. Nele, à dor do abandono pelo Outro do amor, ao sofrimento pela traição do Outro do desejo contidos no Fort (Cadê?) sobrevém o júbilo afirmativo do Da (Achou!).

O jogo do luto: a tragédia
O júbilo é o efeito detectado por Freud da representação do jogo do fort-da que é um efeito de gozo. Na tragédia, à compaixão e o terror, soma-se o esse júbilo próprio à arte, ou, em outros termos, o entusiasmo. Vale lembrar que um dos termos para designar tragédia em alemão é Trauerspiel, que significa literalmente O jogo do luto. Eis o paradigma do fazer artístico: a transformação do gozo do sofrimento em criação através de uma representação teatral. O jogo do fort-da tem o mesmo fundamento que encontramos na definição que Aristótels propõe para a tragédia: "é a representação (mimesis) de uma ação importante".

Obs: as fotos aqui postadas são do espetáculo Les Atrides, encenado pelo Théatre du Soleil (Paris). Em destaque a a triz brasileira Juliana Carneiro da Cunha.
[1] Freud, Para além do princípio do prazer, v. XVIII, p. 17.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Édipo por Bacon


Inspirado no quadro de Ingres 'Édipo e a Esfinge" (ver postagem dia ) de 1826-27 que está na National Gallery em Londres, Bacon adapatou livremente os elementos da história de Édipo em seu encontro com a Esfinge.

In this painting, Oedipus, his foot anachronistically still bleeding and bandaged, is consulting the sphinx, through the open door an avenging furey whirls in the air, blood dripping from its jaws. The sickly pink and browns heighten the atmosphere of impending doom. The composition is starkly simple, and forms are broady brushed in, but the bloodied foot holds our facinated gaze.

Neste quadro, Óidipous, o Pé-inchado, ainda está com o pé sangrando, ou seja sangrando desde bebê quando seu pai enterrou ferros em seus calcanhares para que pendurado, fosee jogado do alto do Monte Citéron. Ele é o Pé-sangrando diante da Esfinge que coloca para ele o enigma dos pés. .

Com esse quadro, compartilha de nossa interpretação: o enigma da Esfinge se referia diretamente a ele e sua história - a maldição paterna que fez Laios tentar matá-lo. E Óidipous não escutou.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

O teatro e a peste

Artaud
A "boa"peste"

Artaud extrai da peste seu lado positivo: seu caráter revelador do mal latente em todo o ser humano; seu poder de convocar forças, reproduzir conflitos ancestrais, trazendo à luz um impossível a suportar, a nomear: o real traumático de um gozo paradoxal onde dor e prazer se confundem. A peste como a pulsão de morte é poder de criação.



Freud fez o mesmo. Ao chegar aos Estados Unidos, no início do séc. XX, para falar sobre a grande novidade que era a psicanálise, Freud disse a Jung: “Nem sabem eles que estamos lhes trazendo a peste!”
O teatro deve ser tão vigoroso e contundente quanto a peste e quanto uma psicanálise. O teatro deve, como a peste, transtornar e transformar.

Eis o poder da peste com a qual se inicia a tragédia Édipo Rei.








Artaud, em seu livro “O Teatro e seu duplo” escreve:


"Como a peste, o teatro é uma formidável convocação de forças que reconduzem o espírito à origem de seus conflitos.”

“A aterradora aparição do Mal corresponde ao tempo negro de certas tragédias antigas que todo teatro verdadeiro deverá reencontrar.”
“Se o teatro essencial é como a peste, não é por ser contagioso, mas porque, como a peste, ele é a revelação, a afirmação, a exteriorização de um fundo de crueldade latente.”


“Assim como a peste, ele é o tempo do mal, o triunfo das forças negras que uma força ainda mais profunda alimenta até a extinção.”

“Há nele, como na peste, uma espécie de estranho sol, uma luz de intensidade anormal em que parece que o difícil e mesmo o impossível tornam-se de repente nosso elemento normal.”
“Toda verdadeira liberdade é negra e se confunde infalivelmente com a liberdade do sexo, que também é negra.”

“Através da peste, e coletivamente, um gigantesco abscesso, tanto moral quanto social, é vazado; e, assim como a peste, o teatro existe para vazar abscessos coletivamente.”



“O teatro, como a peste, é uma crise que se resolve pela morte ou pela cura. E a peste é um mal superior porque é uma crise completa após a qual resta apenas a morte ou uma extrema purificação. Também o teatro é um mal porque é o equilíbrio supremo que não se adquire sem destruição.
"O teatro convida o espírito a um delírio que exalta suas energias; e para terminar pode-se observar que, do ponto de vista humano, a ação do teatro, como a da peste, é benfazeja, pois, levando os homens a se verem como são, faz cair a máscara, põe a descoberto a mentira, a tibieza, a baixeza, o engodo; sacode a inércia asfixiante da matéria que atinge até os dados mais claros dos sentidos.”

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Apolíneo + Dionisíaco = Tragédia

Dois impulsos estéticos
constituem a arte trágica


Em o Nascimento da tragédia, Nietzsche atribui o efeito trágico à conjunção de dois trieb, “duas pulsões que chamarei de dois impulsos estéticos: o apolíneo e o dionisíaco”[1]. A arte do apolíneo é arte figurada (ex. artes plásticas) e a arte de Dionísio é a arte não figurada como a da música. A conjunção de ambas geraram a tragédia ática.



Nietzsche por Munch (1906)


O apolíneo é o âmbito da figuração, da bela aparência, do mundo dos sonhos (o sonho como figuração plástica) e das fantasias, do poder divinatório característica do deus Apolo, a quem os gregos erigiram um santuário em Delfos onde se situava o Ônfalus, umbigo do mundo.






O dionisíaco é a “exceção ao princípio da razão”. É a embriaguês, o delicioso êxtase, da beberagem narcótica à alegria pela aproximação da primavera após o inverno passando pelo terror e pela violência dionisíaca que arrasta multidões cantando e dançando bramando a vida candente, como no carnaval (carnevale – festival da carne). O transporte dionisíaco[2] faz o subjetivo se esvaecer. Cantando e dançando o homem desaprendeu a andar e a falar, e está aponto de sair voando pelos ares. O homem caminha agora extasiado e enlevado. Na arte o sujeito em fading caminha acéfalo ao comando das batidas da pulsão. “A força artística revelou-se sob o frêmito da embriaguês”. A arte advém quando o sujeito se esvai diante do objeto; “o homem não é mais artista, tornou-se obra de arte”.

O Culto a Dionísio: origem da tragédia
A tragédia desenvolveu-se a partir do culto a Dionísio com as orgias dionisíacas passando pelo ditirambo dionisíaco (canto com coro e solista) onde os participantes são incitados “à máxima intensificação, segundo Nietzsche, de todos as suas capacidades simbólicas”[3].
No culto com as festas se alcançava o “júbilo artístico” e se presentificam a “maravilhosa mistura dos afetos do entusiasta dionisíaco” constituindo o “fenômeno segundo o qual os sofrimentos despertam o prazer e o júbilo arranca do coração sonidos dolorosos”. Na música dionisíaca “da mais elevada alegria soa o grito de horror ou o lamento por uma perda irreparável”[4].

Dionísio é o deus da transformação e da duplicidade e da fragmentação trazendo em seu mito vida e morte conjugados. Filho de Zeus e Perséfone foi esquartejado pelos Titãs e em seguida, Atenas reuniu seus pedaços e os entregou a Zeus. O costurou em sua coxa e proporcionou-lhe um segundo nascimento. Foi então que entregou a Sileno, sátiro sábio, para ser seu preceptor.

Deus despedaçado, símbolo da abolição do sujeito por ter sido morto e depois revivido, Dionísio é o símbolo da ambigüidade e duplicidade. Deus da transformação, ele é o deus do teatro. Sobre aquele que educou Dionísio, Sileno, relata-se, segundo Nietzche, que à pergunta do rei Midas que queria saber do sábio o que era o melhor e o preferível para o homem, respondeu: “Antes não ter nascido e nada ser. Depois disso o melhor é morrer o mais rápido possível”. É o que encontramos cantado pelo Coro de Édipo em Colona, comentado por Lacan: Me Funai! Antes não ser¹



O apolíneo, como defesa ao dionisíaco
Diante dos temores e horrores do existir, os gregos criaram a cultura apolínea da beleza com o louvor à vida com harmonia e prudência instaurando a medida, a observação das fronteiras do indivíduo. Ao lado da necessidade estética da beleza colocaram a exigência do “conhece-te a ti mesmo” e o “nada em demasia”, frases inscritas no templo de Apolo, em Delfos.


Dioníso X Apolo

A revolta do dionisíaco
“Imaginemos, diz Nietzsche, como nesse mundo construído sobre a aparência e o comedimento, e artificialmente represado, irrompem o tom extático do festejo dionisíaco em sonâncias mágicas cada vez mais fascinantes, como mostra todo o desmesurado da natureza em prazer, dor e conhecimento. Até o grito estridente devia tornar-se sonoro; imaginemos o que podia significa o demoníaco cantar do povo em face aos artistas com seus salmos diante de Apolo com os fantasmais arpejos de harpa!”[5]

Todos os preceitos apolíneos são aí esquecidos e a hybris revela-se como a verdade, a contradição, o deleite nascido das dores. “E em toda parte onde o dionisíaco penetrou, o apolíneo foi suspenso e aniquilado”. O êxtase do estado dionisíaco conduz ao “aniquilamento das usuais barreiras e limites da existência”[6].

A conjunção do dionisíaco e o apolíneo: a tragédia
É a expressão do dionisíaco através da forma apolínea que vamos encontrar na arte da tragédia grega do séc. V a.C. herdada no culto de Dionísio e dos ditirambos (canto coral composto por um solista e um coro que dança, toca e canta). “O coro ditirâmbico, diz Nietzsche, recebe a incumbência de excitar o ânimo dos ouvintes até o grau dionisíaco para que, quando o herói trágico aparecer no palco, eles não vejam um homem mascarado, porém uma figura como que nascida da visão extasiada deles próprios”[7].


O dionisíaco da tragédia, trazido principalmente pela música, confere ao mito a mais profunda significação. Se não fosse a tragédia, o mito perderia sua função de ser o arauto da verdade, ou seja, uma modalidade de (semi)-dizer a verdade: a verdade de sua descontração mantendo seu enigma. A tragédia ao colocar o mito em cena com a poesia e a música restaura seu poder de transportar o gozo e suas vicissitudes.

A música, essência da tragédia
A música dionisíaca na tragédia faz o mito florescer pois o destino do mito é “arrastar-se pouco a pouco na estreiteza de uma suposta realidade histórica e ser tratado como um fato único com pretensões históricas”[8]. A música, para Nietzsche, é a essência da tragédia, “essência que cabe interpretar unicamente como manifestação e configuração de estados dionisíaco”... “como mundo onírico de uma embriaguês dionisíaca”.[9]

Acolher o dionisíaco na arte
Enquanto Apolo rege a medida, a harmonia, a ordem e a proporção criando as formas e a beleza, Dionísio rege a hybris, desmedida, volúpia da dor e do sofrimento, a indiferenciação que em estado puro levaria até o aniquilamento da vida. Para Nietzsche não se trata de afastar, negar ou rejeitar o dionisíaco, mas de recebê-lo para que ele se expresse através das formas apolíneos, sem se deixar subjugar por estas. O resultado dessa conjunção artística foi a tragédia grega - fenômeno que durou um século.



Teatro de Dionísio (Atenas)

Eis, a meu ver, o que faz Freud dizer que Nietzsche foi “o primeiro psicanalista”, ao render homenagem a ele em entrevista aos 70 anos, pois aí poderíamos reconhecer a proximidade dos conceitos de Eros e pulsão de morte com as “pulsões” (trieb) descritas por Nietzsche[10].


Trecho extraído do texto de Antonio Quinet A Tragiorgia, publicado em Stylus, Revista da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, vol. 17, 2007.


[1] Nietzsche, O nascimento da tragédia ou Helenismo e pessimismo, 1992/2006.
[2] Nietzsche, Ibid., p. 30.
[3] Nietzsche, Ibid, p. 35.
[4] Nietzsche, Ibid, p. 34.
[5] Nietzsche, op. cit. p, 41.
[6] Nietzsche, op. cit. p. 55.
[7] Nietzsche, op. cit. p. 62.
[8] Nietzsche, op. cit., p. 71.
[9] Nietzsche, op. cit., p. 90.
[10] Freud entrevistado por George Sylvester Viereck in A Arte da Entrevista (org. Fábio Altman), 2004.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Pesquisa teatro e psicanálise

PESQUISA TEATRO E PSICANÁLISE:

TRAGÉDIA GREGA

RELATOR: ANTONIO QUINET
(PERÍODO 2006 – 2008)

Objetivo
O Objetivo desta pesquisa efetuada no Mestrado de Psicanálise, Saúde e Sociedade da UVA é o estudo teórico e teatral das articulações entre as descobertas da psicanálise e as teorias e práticas teatrais para chegarmos a uma proposta de encenação de uma adaptação da tragédia grega Édipo rei de Sófocles com a Cia. Inconsciente em Cena dirigida por mim.

O Inconsciente é constituído por cenas em que são trazidos ao palco do divã os acontecimentos da subjetividade.
O teatro e a psicanálise começam com a tragédia, cujo paradigma é essa peça de onde Freud apreendeu o desejo inconsciente articulado ao incesto e o ao parricídio.
O Inconsciente é teatral e trágico.
Orientado pela psicanálise efetuei uma "transcriação" dessa tragédia antiga e em seguida através de ensaios a Cia. Inconsciente em Cena estamos levando-a aos palcos para transmitir ao vivo e no real aquilo que a psicanálise e a arte ensinam.

Metodologia
Nosso projeto de pesquisa desenvolveu-se em duas etapas.
Pesquisa bibliográfica e textual
A primeira etapa foi constituída pelo estudo da bibliografia sobre: tragédia em geral, a peça de Sófocles Édipo rei, as diversas versões da peça em português, inglês, francês e grego. Essa etapa culminou na elaboração do texto Óidipous, filho de Laios. Ela contou com a colaboração de Fernando Salis, Professor Adjunto da Escola de Comunicação da UFRJ no estudo e no estabelecimento do texto, e de Izabela Bocayuva, Professora Adjunta de Filosofia da UERJ, na assessoria do grego. Enquanto isso, eu dediquei meus cursos e seminários no Mestrado da UVA e em Formações Clínicas do Campo Lacaniano sobre o assunto a partir de textos de Freud e de Lacan. Paralelamente a essa pesquisa sobre a peça desenvolvemos a pesquisa sobre a música e filosofia na tragédia com a colaboração de José Eduardo Costa Silva, Professor de Escola de Música da UEMG, Doutorando de Música da UNIRIO, compositor e alaudista a partir das indicações de Nietsche no Nascimento da tragédia e o espírito da música. O Professor José Eduardo compôs a trilha sonora original de Óidipous, filho de Laios.

Leitura dramatizada
Criação da Cia. Inconsciente em Cena
Em seguida, numa segunda etapa, criei a Cia. Inconsciente em cena e começamos as leituras e ensaios com os atores a partir do texto Óidipous, filho de Laios que culminou numa leitura pública dramatizada com trilha sonora e figurinos (da designer Valéria Naslausky), ambos originais, com o apoio da FAPERJ e da UFRJ (na qual o Professor Fernando Salis atuou como protagonista e dirigiu, com seus alunos da ECO na produção de um vídeo), para mais de 300 pessoas no Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ em dezembro de 2007.







Obra em processo - pesquisa cênica, corporal e musical

O ano de 2008 foi o ano dedicado aos ensaios e à criação da encenação da peça para a qual
contamos com a colaboração de Regina Miranda, coreógrafa e Diretora do Centro Coreográfico do Rio de Janeiro e do Centro Laban de Nova York na movimentação corporal.

Lilian Chalub ensaia com Regina Miranda o suicídio de Iokaste



E do Professor Domingos Sávio de Oliveira do Mestrado de Fonoaudiologia da UVA pra o trabalho de voz. Nesse ínterim estive em Paris apresentando e testando o resultado de minhas pesquisas na Ecole de Psychanalyse des Fóruns du Champ Lacanien e em contato com o grande helenista Jean Bollack com quem mantive, antes e depois, correspondência sobre minhas interpretações da tragédia de Sófocles.





Ao longo do trabalho de direção e mise en scéne foram efetuadas quatro apresentações públicas de nossa "obra em progresso" (work in progress): em julho em São Paulo durante o V Encontro Internacional da Escola dos Fóruns do Campo Lacaniano eno Festival de Inverno de São João del Rey, sendo a última em 31/10/2008 na UVA (Campos Tijuca), em setembro na Semana de Psicologia da UVA e em outubro no Colóquio Internacional do mestrado de Psicanálise, Sáúde e Sociedade e X Jornadas de Formações Clínicas do Rio de Janeiro.



Óidipous (Marcelo Mello) e Iokaste (Lilian Chalub)



Resultados

Qual história contar?
O primeiro resultado da pesquisa foi um resultado teórico que influenciou todos os outros resultados no ensino, na transmissão e no teatro: a origem da maldição que Édipo herdou brilha por sua ausência tanto nas peças de Sófocles que chegaram até nós quanto nos textos de Freud e de Lacan. Trata-se da desmedida de Laios, pai de Édipo, que raptou Crísipo, o filho de Pélops, por quem se apaixonara causando assim a ira paterna que lançou a maldição que toda a descendência herdou. A partir daí elaboramos a importância do Pai real do gozo cujo crime é transmitido inconscientemente ao sujeito determinando sintomas e inibições.


A transcriação
A reinterpretação da peça resultou em uma original transcriação – conceito de Augusto de Campos para se referir a uma tradução criativa com liberdade do autor que a recria e transforma o texto original em uma obra sua – que é o texto Óidipous, filho de Laios. Nesta, o herói, Óidipous é levado pela paixão da ignorância e se engana ao interpretar a Esfinge ignorando que o enigma se referia à sua origem, seu passado e seu futuro. No processo de transcriação, procurei aproximar o texto de 2.500 anos para o contexto atual interpretando o papel dos deuses (Atenas = sabedoria, Ártemis + coragem, Apolo = poesia) considerando que o oráculo é o que está escrito para cada um em seu inconsciente. E a tragédia é o que herdamos dos Outros que nos antecederam e sobre a qual não queremos saber. Isso resultou num texto de acesso fácil, com linguagem coloquial que contam a história sem perder sua tragicidade.

Encenação
Quanto à encenação, nossa pesquisa aproximando a tragédia grega de nosso contexto levou-nos aos índios brasileiros e a situar Tebas, cidade de Édipo, na fronteira greco-xingu (imaginária e mítica) – isto orientou nossa proposta de encenação e nossa pesquisa de adereços, de máscaras e figurino e de cenografia optando pela caracterização dos índios do Xingu (FUNAI no Rio de Janeiro).
Teirésias (Aline de Luna) com máscara de índio do Xingu

Valorizando a música como elemento dionisíaco da tragédia, agregamos instrumentos musicais de diversas culturas e épocas apontando para a universalidade do tema e colocamos em cena dois atores músicos (uma cantora lírica) além do compositor professor que sobe ao palco para reger o coro, operar o som e tocar diversos instrumentos.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

A música na tragédia



A música de Óidipous, filho de Laios
Como produzir o trágico?

por José Eduardo Costa Silva


Enquanto estava compondo a trilha de Óidipous, eu me perguntava: o que, efetivamente, torna uma música trágica? Como produzir os efeitos do trágico?Ou seja: como produzir a angústia e o desejo de transgressão do mundo sensitivo? Como produzir o êxtase através da música? Como atender a diretriz da encenação de situar o fenômeno do trágico no eixo Grécia-Xingu?


Considero que o caráter universal do trágico torne a música trágica supra-temporal e supra-cultural. Por isso, há música trágica em qualquer tempo, em qualquer região, em qualquer cultura: seja na Grécia, no Xingu ou no Rio de Janeiro. É possível verificar esse fato porque conhecemos os efeitos do trágico.

O vir-a-ser

A música trágica sugere que exista algo além do que está presente em nossos sentidos. Produz angústia; um convite à transgressão do que é valor e significado. Ela é da ordem do transitório, do vir-a-ser; daquilo que não se fixa em uma presença determinada. A música trágica leva ao êxtase, colocando-nos no limite do desvanecimento do “eu”, convidando-nos à experiência de todas as possibilidades do ser.

O dionisíaco


Dionísio com Pan e Eros

Em A Origem da Tragédia no Espírito da Música, Nietzsche associa a música trágica ao culto de Dioniso que, dentre os gregos, é o deus “despedaçado pelos Titãs”, para eternamente retornar em formas individuadas. Este é o significado permanente do espetáculo trágico: o despedaçamento de uma totalidade em formas individuadas, que são os outros deuses e as “personagens mascaradas”. A música é o elemento dionisíaco da tragédia.


Da totalidade à fragmentação

Óidipous traz o destino em seu nascimento:a auto-destituição de si mesmo enquanto sujeito, configurada pelo horizonte inexorável da morte, na medida em que ele foi vítima da tentativa de assassinato da parte de seus pais. Eis o caráter universal do trágico, pois, afinal, todo ente vive a experiência da geração e da corrupção, do erguimento e do desvanecimento e, sobretudo, das circunstâncias que fazem dele mesmo um ente fugaz, destacado da totalidade.

Optei por trabalhar musicalmente a tensão entre totalidade e fragmentação ou, em termos filosóficos, a tensão entre constância e devir. Este procedimento poético é tradicional. Está presente em obras de todos os períodos estilísticos, destacadamente na música grega da antiguidade, no barroco e no romantismo tardio. Entendo que a generalidade deste procedimento ocorre devido à conexão entre arte e ser: a arte, enquanto princípio de articulação do pensamento, reivindica que reconheçamos o que é e o que estar por vir.

A técnica

Para criar a sensação de totalidade e/ou constância recorri às seguintes técnicas: 1) produção em midi de melodias minimalistas, pautadas na repetição, reiteração e variação de elementos da rítmica grega e indígena, assim como da constante aparição de um motivo melódico, que perpassa a trilha sonora em seu conjunto; 2) acentuação da sensação de circularidade do tempo, através do retorno constante às estruturas musicais determinadas, reconhecíveis pelos ouvintes; 3) predominância de timbres, cuja proveniência é facilmente reconhecida, tais como timbres produzidos por sinos, madeiras e chocalhos.


Notação de música grega (melopéia) em stela grega (museu de Delfos)

Em contrapartida, para criar a sensação de fragmentação e devir trabalhei com elementos de caráter aleatório, quais sejam: 1) gestos musicais de altura, ritmo e timbre não determinados; 2) gestos musicais apresentados fora de uma periodicidade temporal; 3) combinação entre sons contínuos, isto é, sem alturas definidas e sons discretos, isto é, aqueles que reconhecemos como notas.

A música de Óidipous é trágica na medida em que é produzida a partir de um amálgama essencialmente conflituoso: música produzida no computador e música interpretada em cena. Ela traz à audição tempos mensurados e não mensurados, sons determinados e não determinados, elementos rítmicos conflitantes, timbres de origens diversas, que nos situam em diversos pontos de nossa memória musical. Para sua realização utilizamos instrumentos de diversas origens: barrocos, indígenas, tibetanos, rurais, etc..

Procurei fazer uma música para Óidipous que fosse trágica na sua relação com o texto. Se, por um lado, sua estrutura constante oferece um apoio para a fluidez da representação teatral, suas estruturas aleatórias buscam expressar as reações que o texto solicita. Trata-se de uma música de cena, que comenta o texto, no entanto, sem explicá-lo: falta-lhe signos remissivos para tal. É nesse último aspecto que a música se insere na trama como mais uma personagem; justamente aquela que de perto assiste o desenrolar da trama e instaura-se afetivamente como questão.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Carta de Édipo a Freud

Carta de Édipo a Freud do umbigo da Terra

Em Delfos









Numa viagem à Grécia que fiz em 2006, tive uma experiência extraordinária.


Após passar por Corinto, Micenas e Tebas, cheguei a Delfos, situada na encosta do Monte Parnasso, onde havia o famoso templo de Apolo e se ia consultar o oráculo através da Pitonisa.

Zeus, desejando encontrar o centro da terra, largou duas águias das extremidades do mundo; as duas aves sagradas encontraram-se em Delfos, determinando assim o "umbigo" da terra - o Ônfalo - por onde Apolo se pronunciava através dos sonhos.







O ônfalo (museu de Delfos)
Umbigo da Terra







Quando já ia saindo, perambulando pelas ruínas do templo, qual não foi minha surpresa de encontrar perdida, no chão, entre dois pedaços de coluna de mármore, uma carta toda amarrotada e bem envelhecida que de pronto apanhei. É esta carta, uma vez traduzida, que envio para os leitores do blog.

Kalimero (Bom dia), Dr. Freud,





Escrevo-lhe do templo de Apolo, em Delfos – ônfalo da Terra –, onde vim consultar o oráculo para saber de meu destino nos séculos vindouros. Esta carta deve ser aberta no aniversário de 150 anos de seu nascimento.



Antes de mais nada: parabéns Doutor Freud! Parabéns por ter mantido viva a mântica dos sonhos, essa prática da interpretação onírica inaugurada pelos mestres da verdade aqui na Grécia e ter dela feito o paradigma da ação do analista.






Apolo agradece.






Obrigado por ter revelado ao mundo que partilho com cada ser humano meus crimes e gozos como filho daquele que, se em sonhos não morreu, teria morrido por minha mão-fúria, e daquela com quem partilhei o parto-coito e me fez pairmão de minha filial fratria.

Que não me julguem erroneamente: minha presença é menos historieta familiar do que estrutura trágica que carrego com meu nome em cada ser-para-o-sexo, em cada ser-para-a-morte. Eu sou o Inconsciente.



Graças ao senhor, Dr. Freud, mestre moderno da Alétheia, o Desocultamento, isso hoje é por todos sabido. O senhor leu na tragédia que Sófocles escreveu sobre mim a verdade do desejo de todo o mundo. A tal ponto que hoje meu nome é indissociável do seu. Estamos amalgamados.







Como aos 150 anos de seu nascimento dizem que eu não mais existo? Que sou velho, ultrapassado, anacrônico? Ha, ha, ha! Acompanho ao longo dos séculos a macromedição de Cronos, vendo homens e mulheres vindo à luz, esmaecendo e apagando. Carrego em mim a lei e sua transgressão, o não-saber sabido de meu desejo e de meus atos, a divisão entre Tebas onde sou rei e Colono onde termino excluído, como bem escreveu Sófocles em sua última tragédia.





Teatro de Delfos

Dizem que o mundo está para além de mim? E que eu já estou ultrapassado. Parakalo! (Por favor!) O que chamam do "para-além de Édipo"está em meu próprio fim inscrito desde minha concepção. Nasci junto com minha morte. E alguém é diferente? Meu para-além escapa ao deciframento. Lá está ele! Lá onde a Erínias bebem o sangue da vingança das vítimas de Tânatos; lá no reino da dor de existir, no silêncio das tumbas. Onde cego, alquebrado, dejeto da civilização grito: Me funai! Antes não ter nascido! Até o para-além de mim, a mim é referido.

Não me venham com interpretações oportunistas dizendo que o mundo mudou e que eu sou uma invenção feita sob medida por um habitante de uma Viena fim de século! Sobreviverei, graças ao senhor, Dr, Freud, a todos aqueles que dizem que não sirvo mais para nada.

Como apagar a marca de castração, que o senhor captou, de meu ato de furar meus olhos? Cuja angústia é o sinal da realização de um gozo atingido para além do possível? É a marca de que ali o olhar se fez presente trazendo à luz o que não podia ser visto. Quando eu via, nada enxergava, quando abri os olhos à verdade da castração, ela os arrancou de minha visão. E pude então saber. Mas que travessia dolorosa foi-me necessária para chegar a esse saber!

Ao recusar-me eles enlouquecerão, pois estarão recusando o complexo lei-transgressão-castração chamado pelo meu nome. Retirem-me de cena e a psicose advirá: seja no imperial-terrorismo paranóico, seja na desagregação capitalista esquizofrênica.

Ao abrirem esta carta, no dia 6 de maio de 2006, o senhor terá uma legião de inimigos, como sempre teve aliás. Mas agora seus detratores, ameaçados, usam de tudo para denegri-lo e desconhecer minha existência trágica em cada um deles.

E isso em nome de quê? Da ciência, da religião e da ideologia capitalista? Sim, rejeitam a fragmentação dionisíaca da pulsão em nome do ideal, do comando e da tirania do Um. Esse Um tão entediante e mortificador. Recusam meu daimon, que o senhor chamou de pulsão, que na verdade é o daimon deles. Isso pouco os interessa e quando ele se manifesta tentam anulá-lo com entorpecentes. Parabéns, Doutor Freud por resistir a tudo isso e manter vivo o paradoxo da coexistência de daimon e logos.


Nascerei tantas vezes quanto me matarem pois trago o marco do desejo indestrutível em minha tragédia, o marco da estrutura em meu mito, e o marco do saber em meus pés. Sim sou capenga, coxo e claudico e assim me mantenho nas andanças do ser: ao pé da letra. Graças ao senhor, Doutor Freud os homens sabem que eles sou eu: um manco. Manco, sim. Um manco que pode dançar no coro dos discursos.

Obrigado Doutor Freud por fazer meu percurso, como Sófocles o descreveu, ser reencenado a cada análise fazendo cada sujeito proceder a uma investigação sobre a origem, o Eros e o ato. Diante do deus-que-porta-o-fogo esfolando a polis – praga amarga – despovoando as moradas cadméias e o Hades negro se enriquecendo de lágrima e lamento, eu rei de Tebas comandei a investigação procurando o culpado de tantos males.

A tumba de meu pai – eu não o sabia – era um olho enorme a olhar-me. Eu seria um homem vil se à verdade me furtasse após ter sido louvado como o decifrador da ríspida cantora a Esfinge, cadela das rapsódias.


A Esfinge (Museu de Delfos)


É verdade, não ouvi de Tirésias, o adivinho cego-que-vê: “Sabes ser o horror dos teus? Com o terror nos pés, a maldição mater-paterna, açoite duplo, há de expulsá-lo daqui”. E a ortovisão me anunciou meu triste fado. Eu salvador da polis era seu destruidor. Movido pelo desejo de saber – o terá sido minha paixão da ignorância ?– não me detive – nem mesmo quando minha mater-esposa gritava: “encerra a busca!”. Não o destino não a previra: a busca foi escolha minha. Não recuei diante de obstáculo algum até ver o impossível. O senhor teve a coragem de buscar-me em cada ser e, amorosamente, levá-lo, a saber o que já é dado, e a poder transformar a infelicidade do destino no efeito trágico do entusiasmo pelo saber.



Parabéns, Doutor Freud.

Assinado: Édipo



Obrigado a todos pela atenção,
Antonio Quinet