segunda-feira, 19 de outubro de 2009

O Real, o Simbólico e o Imaginário em Óidipous

A subjetividade teatralizada
A análise da tragédia grega implica considerar o pensamento grego distinto do atual. O homem grego era alguém profundamente implicado e próximo de seu ato. Isto quer dizer que pensar era, para ele, agir. Talvez, por isso, os poetas se preocupassem em representar teatralmente o que se passava na esfera subjetiva; não porque eles soubessem do inconsciente, mas porque era fundamental dar nome ao que se experimentava. Assim, Sófocles foi considerado, por Aristóteles, o “príncipe dos trágicos”, e seu Édipo Rei, a mais sublime e perfeita das tragédias, posto que ela é a encenação da experiência de engendramento do desejo, “a cena sobre a cena” onde o drama da existência tem lugar, articulando os planos do ator e do espectador num único enquadre. E, tomado essa perspectiva atemporal do drama do desejo, parece-me fundamental fazer um comentário sobre a leitura que Antonio Quinet faz dessa mesma tragédia.

O psicanalista artista
Toda vez em que um psicanalista é chamado a falar fora de seu consultório, ele não está, obviamente, no lugar que lhe cabe, o da direção do tratamento de seus analisandos. Quando ele reflete sobre alguma questão outra, sobretudo no campo da cultura, sua posição é a de se deixar ensinar pelo que escuta/olha, aprendendo com a arte o que nela precede sua formalização teórica. Assim, é porque o campo do desejo circunscreve na arte o material de seu efeito, que, podemos dizer, o artista nos dá, sem saber, acesso ao lugar da letra inconsciente do autor da obra.

O tempo da tragédia
No teatro, as coisas se passam na temporalidade do dito. As unidades da ação, do lugar e do tempo, tão caras ao teatro grego, juntam-se na sincronia de uma representação cujo ponto de partida é a articulação ente mito, coro e ditirambo. Num certo sentido, o teatro grego oferece a estrutura do inconsciente na cena representada. A “cena sobre a cena” recobre a divisão subjetiva do ator/espectador. Tempo real do nascimento da cultura ocidental.
Sem entrar num desenvolvimento detalhado, poderíamos dizer que a tragédia de Sófocles, Édipo Rei, explicita a força do desejo no seu desafio à ordem da cultura e da história, mostrando o conflito entre demanda e desejo, entre a dívida simbólica e a liberdade do desejo.
Seria o caso de perguntarmos: que sentido tem hoje o fenômeno trágico e a tragédia? Se o mundo contemporâneo admite o trágico, em que medida e de que maneira ele pode ser vivido?
O teatro da vida dentro do teatro, tão bem encenado por William Shakespeare, mostra-nos que o trágico vai-se modificando ao longo do processo de elaboração, de simbolização da experiência do sujeito. Por isso, cada autor tem do trágico uma leitura que lhe é singular e que depende do momento experimentado na elaboração de seu texto.

A força do desejo
Se toda escrita se realiza não só com os significantes, mas também e sobretudo com a letra no inconsciente, então a leitura de uma obra como Édipo Rei deve ser entendida no contexto e na temporalidade em que é mostrada. Aliás, não é possível outra fidelidade que a explicitada por cada dramaturgo na condição de autor/leitor da obra. Sua liberdade de criar sobre o texto original é a da medida de seu desejo, sendo ele o único sujeito da crítica cujo mérito é indiscutível; porque seu trabalho de elaboração resulta da peça encenada, sendo esta a mostração do que pode receber como transmissão de perda de sentido do que, no texto do autor original, é resto a ser nomeado.
Se, como diz Aristóteles, na Poética, “aquele que escreve está altamente comprometido com o seu escrito”, é porque, ao escrever, o sujeito dá lugar ao que de mais íntimo habita seu pensamento. Ao escrever, o autor/dramaturgo é comandado, sobredeterminado pelo que lhe é mais íntimo e mais estranho. Algo que pulsionalmente o excede, fazendo-o conhecer as coordenadas do autor secreto que o habita, verdade de um saber que desconhecia e que, de fato, o faz autor/leitor da obra.

RSI em Óidipous
Antonio Quinet oferece-nos, com sua Óidipus, filho de Laios, uma leitura pelo avesso do drama clássico de Sófocles, Édipo Rei.
Chama a atenção do espectador, a leitura da tragédia contemporânea que Quinet oferece do ponto em que a função paterna, estruturada na experiência edípica de cada sujeito, claudica na ilusão civilizatória de nosso tempo. Os três planos em que estrutura sua montagem articulam-se como Real, Simbólico, Imaginário do nó borromeano.
Ao Real, corresponderia a tragédia original, estrutura da cena do engendramento do sujeito. O drama é a experiência traumática de defrontamento do sujeito com a verdade de seu desejo. O plano Simbólico, achamos que está representado pela elaboração do espectador que lê a cena com a letra de sua própria experiência inconsciente. A ela, se articula, como derradeiro plano, o Imaginário indígena, onde as tribos primam pela transmissão oral de sua cultura, tal como ocorria na Antiga Grécia. Nesse caso, porém, o que tem valor de sintoma é o fato de sua existência, como “cultura diferente”, ser denegada pela cultura oficial. Os indígenas são considerados estrangeiros à nossa cultura, muito embora sejam os verdadeiros nativos da terra que ocupam. Por que será que a transmissão da civilização grega pode ser eficaz e as culturas primevas de nosso tempo não? Esta é, a meu ver, uma questão a ser pensada, pois, em alguns aspectos, por exemplo, na preservação ambiental, os indígenas estão a nossa frente.

A música e o abismo da significação
Um outro importante ponto da peça a ser mencionado é o uso da música. Não tanto a que se faz ouvir a partir dos instrumentos musicais, mas a que emana das palavras em grego. A forte sonoridade dessas palavras convoca um “abismo de significação”, conforme foi mencionado por José Eduardo Costa Silva, no debate no SESC Copacabana. Penso, contudo, que essa sonoridade margeie outros sentidos, como o da perda necessária da significação original do texto, uma vez que o trágico grego não corresponde à apreensão contemporânea do trágico, mesmo que saibamos que o que faz a tragédia ser eterna é o fato de ela ser inerente à experiência de todo sujeito na sua relação com o mundo.

Teresa Pallazo Nazar, psicanalista (Escola Lacaniana de Psicanálise)

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