sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Freud e a Esfinge

“De onde vêm os bebês?” eis para Freud o enigma da Esfinge.



Sigmund Freud

Toda criança coloca essa pergunta como um enigma antes mesmo de saber algo sobre a sexualdidade. Pode surpreender que Freud interprete assim o enigma da Esfinge. Mas o entendemos quando verificamos que o que está em jogo mesmo nessa charada da Esfinge é a questão sobre o desejo do Outro. De onde eu vim? Como vim para aqui neste mundo? Meus pais me quiseram? Desejaram que eu viesse? Acolheram-me?

O Outro me deseja? Será que meus pais me desejaram?
Qual o meu lugar no desejo do Outro? Tenho algum lugar aí?

Sou filho do Amor, do Acaso ou da Morte?

No enigma da Esfinge está em jogo a questão do saber o seu lugar em relação ao desejo do Outro, os pais.


A Esfinge - Irina Ionesco

Óidipous, tem os pés inchados porque seus pais quiseram matá-lo.

Não, Óidipous, você não tem lugar no desejo do Outro. Seus pais quiseram eliminá-lo quando você chegou. Você não tem lugar neste mundo.

Ou tem? E deve conquistá-lo?

De juiz a réu


No caso da peça de Sófocles sobre o Édipo, esse Outro não só é representado por seus pais verdadeiros como também por Tebas, a Polis. No início da peça ele tem um lugar de rei nesse Outro, de sábio, de salvador, pois ele com sua inteligência desvendou o enigma da Esfinge e liberou Tebas daquele terror. E daí vemos todo o povo a ele se dirigir suplicando que, assim como daquela vez, salvasse o povo e desvendasse o enigma da peste. Por que os deuses tinha enviado a peste? Por que eles estavam sendo castigados? Kreon traz de Delfos a resposta: a peste está aí por que o assassino de Laio ainda não fora punido. E ao se encarregar da busca, como um juiz, ele descobre que é ele o réu.

De rei a rebotalho
Ao longo da peça ele descobre que ele é a causa da peste e no final ele não morre como ocorre com outros heróis de outras tragédias gregas, mas é banido, exilado de Tebas. Édipo se torna um “sem-lugar”, Ektopos, e realiza assim o desejo do Outro (aqui os pais) de exclusão. Sua trajetória é de rei a rebotalho, de dentro de Tebas para fora dela, de desejado a expulso, de adorado a odiado.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

O enigma dos pés

Dipous, tripous, tetrapous

A Esfinge - Franz Von Stuck




A Esfinge colocava o seguinte enigma para todos os que chegavam a Tebas.

Quem tem dois pés sobre a terra... e quatro pés...e três pés. E um só nome? Sem mudar de natureza ele pode se mover na terra, no ar ou no mar. Quando ele anda com o maior número de pés sua destreza é menor.
(cf. Asclepíades, poeta trágico do séc. IV AC que escreveu,segundo Jean Bollack, uma coletânea sobre as tragédias)

A versão resumida e simplificada foi a que ficou conhecida:

O que é que de manhã anda com quatros pés, de tarde com dois pés e de noite com três pés?
(cf. Apolodoro e Ateneu)


Óidipous respondeu “É o homem” e a Esfinge se mata jogando-se num precipício. Sua resposta é em parte verdadeira, pois na manhã de sua existência o homem engatinha de quatro como criança, depois como adulto anda com dois pés, na noite de sua velhice, ele caduca com três pés apoiando-se em uma bengala curvado com o peso da idade.


Mas só em parte sua resposta é verdadeira, pois ela “mascara o verdadeiro problema: o que é então o homem? O que é Édipo? A pseudo-resposta de Édipo abre-lhe as grandes portas de Tebas. Mas, instalando-o na chefia do Estado, ela realiza, dissimulando-a sua verdadeia indentidade de parricida e incestuoso" (J.-P. Vernant, Mito e tragédia na Grécia Antiga, Duas Cidades, 1977, p. 91).
O enigma da Esfinge é o enigma da identidade e da origem. O que sou eu? De onde vim?

É o “enigma dos pés”, pois a história de Óidipous está escrita em seus pés - seus pés inchados – que foram furados por seu pai na tentativa de matá-lo para que esse não o matasse e assim se cumprisse a maldição de Pélops. (vide texto deste BLOG “A maldição dos Labdácidas”).


Quem é tetrapous, dipous e tripous, Oidipous? Não dava para escutar o jogo de palavras contido no enigma? Édipo "é o-de-dois-pés", Oi-dipous. A resposta ao enigma da Esfinge é o próprio Édipo.

Sua resposta é, portanto, uma pseudo-resposta. E a Esfinge desaparece naquele momento, mas a verdade que ela encarna volta sob a forma da peste, anos depois, quando ele já tem quatro filhos com sua mãe, Iokaste.


Mas ele só escuta: o homem, no sentido de humanidade e não no sentido de que ele é "o homem" em questão.

Édipo liberta o povo de Tebas da pergunta sobre a verdade, sobre o que é o homem. Assim, ele “suprime o suspense da questão sobre a verdade da natureza humana que ele mesmo encarna” (Lacan, O seminário, livro XVII, O avesso da psicanálise, p. 113-114).

Óidipous, portanto, decifra o enigma da Esfinge e se torna rei, é considerado um sábio fazendo justiça a seu nome: Oi remete a oida que é “eu sei” e pous é “pé”. Édipo é "aquele-que-sabe-do-pé", ele é um “eu sei pé”. Mas é justamente isso que ele não quer saber, movido pela paixão da ignorância.
Ele não escutou o enigma dos pés. E não quis saber de sua origem e do crime do pai

O enigma que a Esfinge está colocando é o enigma do próprio Édipo. Ela está se referindo a ele mesmo: é ele que é ao mesmo tempo criança, adulto e velho. Pois com o incesto ele confunde as gerações sendo filho e marido da mãe e sendo irmão de seus próprios filhos e seria avô de seus sobrinhos se seus filhos tivessem descendentes.

Assim, o nome de Oidipous traz a marca de sua origem, ou seja, a marca de exclusão, a marca do desejo mortífero do Outro (representado por seus pais). Seu nome e seu corpo são os lugares de inscrição de sua história: ele nasceu como o herdeiro do trono de Tebas e seus pais negaram-lhe esse direito e o direito à vida.

Seu nome contém a pergunta e a resposta sobre a origem, a mesma que ele colocara ao oráculo de Delfos, quando saiu de Corinto para saber quem eram seus pais: “Quer saber onde nascestes? Teus pés inchados mostram que és de Tebas e que teus pais quiseram matar-te”.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Atualidade de Laios

O Tempo de Laiusar


O pai real do gozo: Édipo, Laio por Freud e Lacan

de Antonio Quinet

Estamos em tempos de Pai real. A figura representativa do Pai simbólico, aquele que une o desejo com a lei, que barra o gozo devastador da Mãe, o pai normativizador que protege e apazigua, esse pai está desaparecendo na aletosfera espessa produzido pela fumaça do desmatamento da subjetividade no mundo contemporâneo. De nada adianta lamentar o declínio da autoridade paterna, acusar o pai de humilhado, impotente e desdentado e receber o que todos já sabem que quem é o escravo da família é o papai.

A figura paterna que tem emergido de seu obscuro anonimato é o Pai real, o grande fodedor, como diz Lacan, o pai sacana fora da lei, gozador, que trata os filhos como objeto.




Temos como exemplo recente o austríaco Joseph Fritzl mantendo em carceragem sua filha por 18 anos nela engendrando seus próprios filhos. E o pai violento, possuído por uma ignorância feroz como o pai de Izabela que auxiliado pela madrasta num ato insano a atirou pela janela abaixo.




Nossa sociedade contemporânea parece viver o mito de Totem e Tabu às avessas: o desmoronamento da Lei simbólica deixa aberto o caminho para o retorno do cadáver vivificado do pai morto, o Urvater, figuração do Pai real, como pai gozador da horda primitiva, tirânico abusador e assassino, que é chamado por Lacan de pai Orangotango.


crânio de orangotango macho pongo pygmeo

O assassinato do pai e sua substituição simbólica por um totem, fez Freud dizer que no inicio era o ato – no inicio da civilização era o ato. Nesses tempos de barbárie contemporânea o que faz aparição não é o ato dos filhos impondo a Lei e sim os atos desmedidos do Pai real que faz a sua lei – lei do gozo – fora de qualquer Lei do campo do Outro.

O mito de Édipo à luz do Pai real do gozo
Laio e sua desmedida
Retormemos o mito de Édipo à luz do pai real e de Totem e Tabu. Quem é o pai de Édipo? Na verdade ele teve dois pais: o pai biológico Laio, rei de Tebas, que ele não conheceu e sem saber o matou, e Pólibo, que o criou em Corinto. Mas é Laio, que aparece como Pai real cuja desmedida constitui a Até, a desgraça, a maldição dos Labdácidos e que será transmitida e paga por três gerações: o próprio Laio, Édipo e seus filhos Etéocles, Polinice, Antígona e Ismênia. Laio é filho de Lábdaco, rei de Tebas e quando este é assassinado, ele é levado aos 2 anos de idade para a Frígia sendo recebido pelo rei Pélops que o adota. Laio tem também dois pais. Pélops tem um filho Crísipo o qual, ao chegar na adolescência, é entregue a Laios para educá-lo. Este se apaixona pelo menino e o rapta e Pélops lança, então, a maldição: "se tiveres um filho ele te matará e toda tua descendência desgraçada será". Daí vem a maldição e toda a história cujo desdobramento está na peça de Sófocles da qual vocês assistirão minha versão após esta mesa. A desmedida de Laios não foi ter tido relações com Crísipo, pois a relação pedagógica erastes-erômenos era aceita como uma relação pedófila normal de amante-amado, professor-aluno na qual o saber não é transmitido sem Eros. A hybris de Laios foi tê-lo seqüestrado e com isso ter rompido as leis da hospitalidade e traído aquele que o acolhera. A maldição de Pelops para Laio é o que o faz furar os pés de seu filho Édipo e mandar matá-lo.
Na minha interpretação, Édipo não quis saber do crime do pai e nem de sua tentativa de assassinato. Ele, em sua investigação, foi até o ponto em que descobre que ele matou o pai e que a mulher com quem está é sua mãe. Mas não vai, além disso pois não quis saber da maldição herdada e da desmedida paterna.

Laiusar
Se compararmos o desenvolvimento trágico da investigação de Édipo sobre sua origem, como o fazem Freud e Lacan, com o percurso de uma análise podemos dizer com Lacan que se Édipo tivesse tido tempo de laiusar ele talvez não teria tido o desfecho que teve.
Lacan introduz esse comentário sobre a peça de Sófocles Édipo Rei no seminário RSI quando aponta que o furo do simbólico, correspondente ao recalque originário, é a morte. A peste, diz Lacan, é isso: a morte é para todos. "É preciso que a peste se propague em Tebas para que esse "todos" cesse de ser de puro simbólico e passe a ser imaginável. É preciso que cada um se sinta concernido pela presença da peste". Esta é portanto, o real do furo do simbólico imaginarizado – peste que é o desdobrametno da calamidade provocada pela Esfinge, outra figura da morte e da Até, desgraça, dos Labdácidas. Édipo, continua Lacan, só matou o pai por não ter se dado o tempo de Laiusar. Se o tivesse feito, o tempo que fosse preciso, teria sido o tempo de uma análise, pois era para isso que ele estava na estrada" (Lacan, RSI, lição de 17/12/1974)
Laiuser em francês é derivado de lalue que significa discurso, fala, peroração no jargão das Escolas. User em francês significa utilizar e também gastar,usar até acabar como uma sola de sapato que de tanto se usar vai gastando e acaba. Na análise é preciso tempo para usar e gastar o pai real. Tempo para se ir para além do desejo de salvar o pai, defrontar-se com seu crime e vencer a ordem de ignorância feroz.

Salvando o pai... para não ver seu crime
Passando do mito à estrutura: é preciso tempo para se haver com o impossível do furo do simbólico lá onde jaz o gozo do pai rela imaginarizado uma vez que pai real e pai imaginário tendem a ser imiscuir um no outro. É o pai que a parece como abusador e criminoso na histeria e na neurose obsessiva cujo gozo se sintomatiza no filho. É o pai de tal paciente do hospital que a espancava quando ainda bebê ela chorava e que hoje seu sintoma é um choro sem fim e sem razão; ou o pai militar que colaborou com a ditadura militar de tal outra analisante que faz de seu corpo um palco de torturas, ou o pai fiscal do imposto de renda de um obsessivo que se enriqueceu ilicitamente deixando para o filho a dívida do eterno desemprego.
O neurótico prefere salvar o pai do que se deparar com sua canalhice; ele prefere sofrer com seu sintoma do que saber do crime do pai e suas conseqüências. Prefere, como Édipo, se sentir culpado de seus atos do que desvelar a desmedida do gozo paterno. Deparar-se com o real do pai é confrontar-se com a conseqüência da falta radical do Outro, ou seja, o gozo mortífero para além desamparo. E para isso é preciso Laio-usar – gastar o Laio de cada um.


O espectro do Pai
A posição do pai real, segundo Lacan, está articulada em Freud como um impossível e não é surpreendente, diz ele, que encontremos sem cessar o pai imaginário. É uma dependência necessária, estrutural. (sem. XVII). A imaginarização do pai real tem seu paradigma no ghost - o morto vivo.


Desenho de Gordon Craig para a cena do fantasma de Hamlet Pai (1908)

É o que vemos na figura do fantasma do pai: o espectro do cadáver vivo, como o pai do Homem dos ratos que apesar de morto lhe aparece vivo no meio da noite e o pai de Hamlet que além de aparecer tem fala. O espectro é o habitante dessa zona entre-duas-mortes, campo de gozo, do Hades ao inferno, onde penam as almas pecadoras e criminosas à espera da segunda morte. "Sou o espírito de teu pai e vivo errante noite e dia até que a podridão de meus crimes seja queimada e purificada" – diz o pai de Hamlet no início da peça. As mitologias criaram esse habitat para o pai real. Mas quem queima é o filho. Ele arde por causa dos pecados do pai, como diz Lacan (Seminário XI). Pai, não vês que estou queimando por causa de teus pecados? E o espectro do pai de Hamlet lhe diz que "a menor de minhas faltas angustiaria tua alma, gelaria teu jovem sangue e teus olhos saltariam das órbitas como os astros de suas esferas..."
Os crimes do pai são de um real que não cessa de não se dizer para o filho e no entanto insiste e se tornam um sintoma do filho – como a dívida do pai do homem dos ratos e o gozo oral do pai de Dora.
O espectro recobre, mascara, vela e também desvela o pai real ou o real do Pai. O espectro é a encenação da articulação entre o pai real e o pai imaginário. É o que se encontra, como diz Marc Strauss, na fantasia de Bate-se numa criança em que as cenas vêem ao sujeito petrificar, cristalizar um excesso como um ciframento primeiro, uma representação do inominável do gozo (Tréfle, maio 1999, nº 2, p. 48). Não importa se é efetivamente do gozo do Pai que se trata ou do gozo imaginarizado do Pai e sim do dispositivo que o sujeito emprega para endossar um gozo que se apresenta a ela como exterior, vindo do Outro.

"É proibido ver a nudez do Pai"
O pai do crime não é o pai da lei, o Nome-do-Pai. O pai estuprador, ladrão, assassino, são figuras do pai imaginário que do fórum à hybris do pai: o gozo desmedido. A desmedida do pai com seu real é aquilo que o filho, com força, não quer saber. O homem é como Édipo, filho de laio – ele não quis saber da desmedida paterna. No lugar do pai real existe, diz Lacan, a ordem de uma ignorância feroz (Seminário XVII, p. 159).
Há uma interdição: "Está excluído que se analise o pai real, diz Lacan em Televisão, o melhor que se pode é o manto de Noé, quando o pai é imaginário" (Télévision, Seuil, p.35).

O manto de Noé - Chagall

Um dia Noé se embriagou e ficou nu em sua tenda. Um de seus filhos, Chan, o viu e foi chamar os outros dois que, ao chegar, taparam os olhos e o cobriram com um manto para esconder a nudez paterna e saíram de costas. Estes se salvaram e a toda a descendência de Chan foi amaldiçoada. O que Noé fazia nu na tenda, jamais saberemos, mas sem dúvida era algo da ordem de um gozo que filho algum poderia em tempo algum ver ou saber. Toda nudez do pai será castigada... no filho.

O filicídio de Abraão

O pai que mata o filho é abordado por Lacan a partir do sacrifício de Isaac por seu pai Abraão comentado por Kierkegard descrito em temor e tremor em que descreve quatro variações do mito que se diversificam a partir do ponto em que Deus diz a Abraão:


"Sacrifica teu filho, mate-o!"


O sacrifício de Abraão - Caravaggio

É na primeira que ele descreve a tentativa de filicídio.. Abraão agarrou Isaac pelo peito, jogou-o no chão e gritou: "Estúpido! Crês tu que sou um pai? Não, não sou teu pai. Sou um idólatra! Crês que estou obedecendo a um mandato divino? Não. Faço isso somente porque me dá vontade e porque me inunda de prazer!". Abraão aparece como o pai real que diria: "Vou te matar por puro gozo!". "Então Isaac exclamou angustiado: 'Deus de Abraão tende piedade de mim! Sê meu pai, já não tenho outro neste mundo!'. Abraão se dirigiu a Ele, dizendo: Senhor onipotente receba minha humilde ação de agradecimento, pois é mil vezes melhor que meu filho acredite que sou um monstro do que perca a fé em ti" (Kierkegaard, 2004, p. 22). O pai monstro, capaz de matar o filho nem que seja por amor a Deus, é o que é transmitido ao filho como seu pecado.
É a propósito dessa passagem de Kierkeggard que Lacan diz no Seminário XI que o que se herda é o pecado do pai. Isaac herda o crime do pai de ter desejado matá-lo. Eis a herança de Isaac e também a de Édipo.

Óiidpous, o pé da letra

Diferentemente de Abraão, que no mito judaico-cristão recebe a ordem de Deus de matar o filho predileto como prova de seu amor, Laios ele mesmo decide matar seu filho Édipo para evitar que este o mate segundo a maldição oracular, fura-lhe então os pés e o entrega a um pastor para ser jogado no lixão do monte Citéron.
O Urvater de Totem e tabu, Noé com sua nudez, o Deus de Abraão, Yavé com sua ignorância feroz e Laios são figuras imaginárizadas e míticas do pai real.
Édipo carrega em seu nome e em seu corpo a marca do crime do pai. A ferida causada por seu pai ao furar-lhe os tornozelos para pendurá-lo como um animal e expô-lo e o edema que ocasionou foi o que lhe deu o apelido de Oidipous, de oiden, edema nos pés. O apelido virou nome próprio e a ferida deixou-lhe coxo. Seu pé carrega um saber (oida) sobre o crime do pai do qual Édipo não quis saber. A esfinge, como aponta Jean-Pierre Vernant, enunciava o enigma dos pés e equivocava com seu nome: "tetrapous, dipous, tripous" disse ela para Óidipous que ao dizer o homem como resposta suprimiu, como diz Lacan, o suspense da verdade. A verdade sobre a castração e o gozo de Laios – o pai real se manifesta em Édipo como aquele que determina a Até família dos Labdácidos do qual ele e sua descendência são herdeiros e também se manifesta como ignorância feroz: mandamento superegóico de não-saber. Eis porque para além do desejo de saber que o impulsiona a querer investigar sua origem, Édipo é possuído pela paixão da ignorância. Aliás, não será a força dessa paixão que faz Lacan dizer que finalmente não existe desejo de saber algum?
O que Édipo ignora é que seu nome é uma letra que cifra um gozo, o gozo do Outro paterno: o "x" da função do sinthoma, ou seja, uma escrita do gozo do Inconsciente.

Óidipous, o que é tetrapous, dipous, tripous?

Édipo e a Esfinge - Gustave Moreau

Óidipous, Pé Inchado é o signo do gozo do Pai que desejou matá-lo e do qual ele não quis saber; Óidipous, Pé-que-sabe é a letra que confere a marca do saber do real, saber do crime do pai da origem da Até dos Labdácidas - móvel do filicídio que faz de Édipo o objeto rejeitado pelo Outro – é o selo de seu ser de dejeto. Rejeitado pelos pais e, no final da peça de Sófocles, ao se apagar como sujeito, pelo Outro social, que representa Tebas. Óidipous não acredita em seu ser de synthoma, não acredita que ele seja capaz de um dizer, pois ele não quer saber que se trata aí de uma cifra do gozo. Eis porque erra em sua ignorância e fica escravizado pelo gozo do Pai, servo do destino. Édipo está preso à ignoerrância.
O crime do pai real como gozo desmedido é transmitido como erro trágico que o filho carrega como Óidipous com seu sintoma no pé.

A análise: tempo de pensar com os pés
Por um lado encontramos a herança da castração que se transmite de pai para filho: Lábdaco , o manco, Laio, o torto, e Édipo, pé inchado. Por outro lado, há a transmissão da maldição que Édipo herda como lote do gozo do pai inscrito em seu nome e seu corpo. Essa letra é o nome do gozo do pai real. O nome que condensa o gozo inscrito no enigma da Esfinge que Óidipous não ouviu.
O tempo da análise é o tempo de laiusar: tempo de laio-ousar – tempo de ter a ousadia de se confrontar com o crime e o gozo desmedido e ectópico do sujeito, que ele localiza no lugar do vazio do Outro – lugar topológico da desmedida do Pai real. É preciso tempo de peroração para o sujeito gastá-lo o suficiente para que se revele o que é: um nada esvaziado de gozo. O tempo de laiusar é o tempo de olhar para os pés, ouvir os pés e pensar com os pés.


Texto apresentado no V Encontro Internacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano em São Paulo, julho de 2008.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

A maldição dos Labdácidas

O Crime de Laios, o Pai


O rapto de Crísipo por Laios e a maldição de Pélops


Laios (o torto, em grego), de acordo com a mitologia grega, é o pai de Óidipous ou Édipo, e filho de Lábdacos, rei de Tebas. Seu pai foi morto por bacantes vingativas pela repressão ao culto a Dionísio. Como Laios ainda era criança, a regência de Tebas foi entregue a Lico. Quando os tiranos Anfião e Zeto mataram o regente e tomaram o poder na cidade, o príncipe de Tebas foi exilado, ainda bebê, na Frígia, na corte do rei Pélops.

Lá foi educado e cresceu. Mais tarde, Pélops teve um filho, Crísipo, príncipe-herdeiro do trono frígio. Quando este se tornou adolescente, Pélops pediu a Laios que fosse seu preceptor, e este se apaixonou pelo menino.
Esse amor homossexual - tolerado pelos costumes gregos enquanto relação pedagógica/pedofílica - deveria ser interrompido quando Crísipo se tornarsse adulto. Mas não foi o caso.

Para continuar a viver seu amor, Laio armou um plano: ofereceu-se para escoltar o rapaz até os jogos de Neméia, onde ele iria participar como atleta. Após as competições, em vez de retornar à Frígia, Laio raptou Crisipo e fugiu para Tebas, onde pretendia recuperar o trono de seu pai, Lábdacos.

Furioso, Pélops perseguiu-os. Por ter perdido o herdeiro, Pélops culpou Laio e lançou sobre ele uma maldição:
“Se tiveres um filho ele te matará e toda tua descendência desgraçada será!”


(Sobre o destino de Crísipo, as versões divergem: ele se suicidou, foi assassinado pela madrasta ou foi levado com Laios para Tebas).


Em Tebas, Laios casou-se com Iokaste ou Jocasta e após a morte dos tiranos assumiu o trono. Assim, a dinastia labdácida foi reconduzida ao poder.

A maldição de Pélops foi ratificada pelos deuses do Olimpo, pois Laios transgrediu as leis da hospitalidade ao trair aquele que o hospedou raptando seu querido filho. Quando Laios tornou-se rei de Tebas, Hera enviou, para Tebas, a Esfinge, com seu enigma das três gerações e seu poder devastador, para punir Laios por seu crime de seqüestro.



The kiss of the sphinx - Franz Von Stuck


Ao consultar o oráculo de Delfos, este lhe disse “se você deseja salvar a cidade, então morra sem filhos”. O que para um rei era terrível: como morrer sem deixar um decendência?

Por causa da maldição, e do aviso do oráculo, Laios tentou evitar ter filhos. (mantendo, segundo Vernant, com a esposa uma relação desviada, do tipo homossexual).

“Mas, ele, cedendo ao prazer,
bêbado, possuído por Dionísio,
colocou dentro de mim
a semente de nosso filho.”
Iokaste, Prólogo de As fenícias, de Eurípedes

Quando nasceu o primogênito, Laios mandou furar-lhe os pés e abandoná-lo no Monte Citéron. Mas o bebê acabou recolhido por um pastor ( de Corinto) e batizado como Óidipous (o de pés inchados) ou Édipo.De acordo com a mitologia, a maldição de Pélops, conhecida como "Maldição dos Labdácidas" (a dinastia tebana iniciada com Lábdaco), foi concretizada quando o Óidipous, filho de Laios, , matou o pai e desposou a própria mãe, tendo com ela quatro filhos, que herdaram a maldição: Antígona, Ismênia, Eteócles e Polinice.


A maldição atingiu três gerações. Óidipous concretiza a mistura dessas três gerações, como apontava a Esfinge com seu enigma. Ele é “sócio de esperma de seu pai e pai-irmão de seus filhos” (cf. Óidipous, filho de Laios).

A característica de Laios é a desmedida, a Hybris, que o faz transgredir as leis da hospitalidade, em seguida descumprir a ordem do oráculo de não ter filhos e depois de tentar matar o próprio filho para que este mais tarde não o matasse, como previu o oráculo e acabou acontecendo.

“Penso, na antiga falta cometida, e tão logo punida,
mas cujo efeito
dura até a terceira geração;
penso na falta de Laios surdo à voz de Apolo, que,
por três vezes,
no assento fatídico de Pitho,
umbigo do mundo,
declarara que ele deveria morrer sem filhos,
se quisesse salvar a cidade”.
Coro em Sete contra Tebas de Ésquilo (versos 742-749).


Obs: Segundo Jean Pierre Vernant, Laios, o torto, “ao tornar-se adulto, mostra-se desequilibrado e unilateral nas usa relações sexuais e no seu relacionamento com seu anfitrião. Ele desvia seu comportamento erótico através de uma homossexualidade excessiva, com uma violência que faz o jovem Crísipo, filho de Pélops, sofrer, rompendo assim as regras de simetria, de reciprocidade, que se impõem tanto entre amantes como entre anfitrião e hóspede.” (Jean –Pierre Vernant, “O tirano coxo: de Édipo a Periandro”, Mito e tragédia na Grécia Antiga, Ed. Perspectiva, 2002, p 183-4).

sábado, 24 de janeiro de 2009

O céu está vazio

Óidipous, O-sem-Deus


O trágico é a passagem
do acasalamento homem-deus
para
a separação ilimitada entre eles.
Eis o que nos indica Hölderlin em suas “Observações sobre Édipo” (JZE, 2008).

Óidipous, filho de Laios traz à cena Óidipous atheos, sem a proteção divina, abandonado à sorte (tykhe). Óidipous é O-sem-deus: atheos. O céu está vazio.


Atheos

Deus é inoperante e infiel e o homem se afasta dele como um traidor/traído.

“Em meio à peste e à confusão de sentidos”, homem e deus são infiéis um ao outro. Óidipous não conta com deus algum e realiza um “afastamento categórico”. Pois ele se depara com a Gottes Fehl , a Falta de Deus. Trata-se da escolha forçada do sujeito de se afastar do Outro divino. Zeus virou-lhe as costas.

A voz de Zeus se calou.
O oráculo de Laois não vingou.
Apagou-se a glória apolínea.
O divino declinou.
(Coro – Estásimo II)


O trágico de Sófocles é “a ausência ou o afastamento dos deuses, que não mais assistem ou previnem os mortais” (Françoise Dastur, Reflexões, Relume Dumará, 1994, p. 183).

Assim , Óidipous Tyrannos de Sófocles é a uma tragédia moderna, pois comemora o dclínio dos deuses, o desvanecimento do Outro encarnado em um ser divino e mítico, entregando para o homem a responsabilidades de suas escolhas.

“Édipo rei é a tragédia da retirada categórica do deus à qual corresponde, da parte do homem, uma retirada equivalente que o conduz ao terrestre”. (Françoise Dastur, op.cit. p. 187).


Óidipous, filho de Laios traz à cena o encontro com a inconsistência do Outro com a qual o sujeito se depara numa psicanálise. Na tragédia, a “unificação ilimitada (com o Outro divinizado) se purifica (se transforma catarticamente) por meio de uma separação ilimitada”, diz Hölderlin (op.cit.). É a passagem da alienação à separação do Outro. (Lacan, sem. XI).

Essa passagem não é feita sem dor. Ela é trágica.


Deparar-se com a falta de um Outro protetor, acalentador, amoroso, apaziguador (e divino!) é sempre causa de angústia.
É ao meio de uma tragédia, no desespero, que invocamos o Nome-de-Zeus. E, na falta dele, aquele que pode ocupar esse lugar - que é o lugar do Pai.

Não há mais deuses.
A natureza se calou.
O céu está vazio.
Onde está quem nos salvou?
(Coro no Párodos)



E saber que não há Deus-pai isso é ruim?
Ora, o Outro é sempre um traidor, pois é falho, incompleto e inconsistente.
O Outro falta, como diz Lacan.
l’Autre manque.
Saber da falta do Outro, faz o sujeito se deparar com as próprias faltas e se responsabilizar por suas escolhas, seus atos e seus desejos. E não ficar mais acusando o Outro
e nem esperando dele a salvação.
O Outro é manco.

“A infidelidade divina é o que há de melhor para lembrar” (Hölderlin).
Que alívio!


sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

A ignorância é a peste

Óidipous, a tragédia do não saber











Óidipous, filho de Laios
mostra a ambigüidade do sujeito
em relação ao saber.
Óidipous tem em seu nome e em seu corpo a marca do saber
(oida = eu sei; pous=pé).
E, no entanto, ele não sabe.

Óidipous sem saber mata o pai e possui a mãe; tem com ela quatro filhos.
Óidipous não sabe quem são seus pais, não sabe de sua origem; não sabe que seus pais tentaram matá-lo; não sabe porque foi vítima dessa tentativa de filicídio; não sabe do crime ético e sexual de seu pai, não sabe da maldição herdada.
Óidipous não sabe, que é ele mesmo o assassino procurado, que é ele mesmo a causa da peste.

Óidipous agiu, ou foi agido, por todo esse saber do qual não sabe. Ou sabe?

Esse saber não sabido é a marca do saber do Inconsciente. E do qual o sujeito se defende. À defesa do saber inconsciente, Freud deu o nome de recalque. A exemplo da tragédia grega, o teatro, segundo Artaud, é feito para permitir que nossos recalques adquiram vida” (O teatro e seu duplo, Martins Fontes, p. 3)

A tragédia de Sófocles é a tragédia do desvendamento da verdade do sujeito, o que fez Freud compará-la ao processo analítico. Pouco a pouco o sujeito descobre seus desejos criminosos: ele também é um Édipo.

Será que Óidipous quer saber?

SIM. A peça é toda ela uma investigação regida por Óidipious para saber quem é o assassino de Laios e em seguida quem são seus pais e qual é a sua origem? Ele foi movido pelo “desejo especulativo” (François Dastur) ele “quis saber demais” (Hölderlin) e essa teria sido sua desmedida (hybris).

NÃO. Óidipous não quis saber. Ele foi até o ponto de saber quem eram os pais mas não foi além. Ele não quis saber do gozo criminoso do pai, Laios, não quis saber da maldição herdada. Ele não foi movido pelo desejo de saber (o qual o próprio Lacan coloca em dúvida sobre sua existência) mas pela paixão da ignorância.

São três as paixões fundamentais do homem, segundo Lacan: o amor, o ódio e a ignorância. Óidipous é possuído pela três: tripous. O não querer saber é a pior dela e leva o sujeito ao pior.
Iokaste e o pastor imploram, ordenam a Óidipous: Pare a investigação!. Ele ele continua e descobre.
"Sou triplo equívoco: ao nascer, ao matar e ao casar." - diz Óidipous.
Mas a ordem feroz da ignorância permancerá.


A atualidade dessa peça desvela a importância de saber de seu desejo, de sua origem e do Outro num mundo científico-capitalista em que a ignorância da subjetividade é crassa e está em primeiro plano. A negação do Outro, o Inconsciente, do Outro, meu parceiro, do Outro, meu diferente.

Eis a peste com toda sua violência: a paixão da ignorância.










quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Obra em processo

Em 2007 foi criada a Cia. Inconsciente em Cena por Antonio Quinet, psicanalista e professor do Mestrado de Psicanálise, Saúde e Sociedade (UVA) para montar Óidipous, filho de Laios - versão contemporânea de Édipo Rei de Sófocles.














A montagem segue a estrutura da tragédia grega, e utiliza música ao vivo e linguagem multi-mídia, situando a "tribo" de Tebas na "fronteira greco-xingu", invocando nossas origens da civilização grega e de nossos índios.




















A Cia. Inconsciente em Cena acentua, na história de Óidipois (Édipo em grego), o tema tão atual do filicídio - cujas notícias de pais abusando e matando seus próprios filhos nos deixou aterrados em 2008 - e da ignorância de si mesmo.














A peça transmite a importância da análise pessoal de cada um: Quem sou eu? De onde vim? O que estou herdando e carrego no meu Inconsciente sem saber? Como evitar a desgraça herdada de gerações que me antecedem e que chamam de "destino"? Como melhor conviver com a condição humana em sua dimensão trágica? Questões presentes para os gregos, os índios e todos nós.




















A Cia Inconsciente em Cena é formada por alunos e ex-alunos da UVA, da UNIRO, do Conservatório de Música, atores profissionais e professores. Todos participam na pesquisa cênica, psicanalítica e musical que tem "como objetivo, diz seu Diretor, “ levar ao público, versões contemporâneas de temas universais que levem à reflexão sobre o sujeito do desejo, da história e da ética e suas manifestações no indivíduo e na cultura. E assim, trazer para a cena, numa linguagem artística e não-acadêmica, questões da psicanálise, da filosofia, da história, da mitologia, etc...".

O processo de trabalho da Cia. inconsciente em Cena implica em apresentações públicas periódicas do processo e a consideração da "obra inacabada", dentro da perspectiva que sempre haverá algo a ser dito, descoberto, melhor encenado, novas articulações de sentido, como o próprio Inconsciente, que trabalha dia e noite.





É uma Cia. em formação permanente. Da cena, dos atores, da equipe, da Cia.








Assim como numa análise, as descobertas cênicas acontecem no decorrer do processo de ensaios e discussões ao se analisar o texto e deixar vir as informações inconscientes que darão a verdade da cena. Entre a descoberta e a criação.
A Cia Inconsciente em Cena, vem apresentando ao público em ocasiões especiais Óidipous, filho de Laios, seu processo de trabalho que já foi visto por 1.500 pessoas em 2008.

A Obra em processo (work in progress) foi apresentada em julho em São Paulo no Encontro internacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano e no Festival de Inverno Cultural de São João del Rey. Em setembro na Semana de Psicologia da UVA e em outubro também na UVA no Seminário Internacional do Mestrado de Psicanálise, Saúde e Sociedades " A verdade e as mentiras" - abertura das X jornadas de Formações Clínicas do Camo lacaniano - Rio de Janeiro.













A Cia. Inconsciente em Cena em São João del Rey no Festival de Inverno (2008).