terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Pesquisa teatro e psicanálise

PESQUISA TEATRO E PSICANÁLISE:

TRAGÉDIA GREGA

RELATOR: ANTONIO QUINET
(PERÍODO 2006 – 2008)

Objetivo
O Objetivo desta pesquisa efetuada no Mestrado de Psicanálise, Saúde e Sociedade da UVA é o estudo teórico e teatral das articulações entre as descobertas da psicanálise e as teorias e práticas teatrais para chegarmos a uma proposta de encenação de uma adaptação da tragédia grega Édipo rei de Sófocles com a Cia. Inconsciente em Cena dirigida por mim.

O Inconsciente é constituído por cenas em que são trazidos ao palco do divã os acontecimentos da subjetividade.
O teatro e a psicanálise começam com a tragédia, cujo paradigma é essa peça de onde Freud apreendeu o desejo inconsciente articulado ao incesto e o ao parricídio.
O Inconsciente é teatral e trágico.
Orientado pela psicanálise efetuei uma "transcriação" dessa tragédia antiga e em seguida através de ensaios a Cia. Inconsciente em Cena estamos levando-a aos palcos para transmitir ao vivo e no real aquilo que a psicanálise e a arte ensinam.

Metodologia
Nosso projeto de pesquisa desenvolveu-se em duas etapas.
Pesquisa bibliográfica e textual
A primeira etapa foi constituída pelo estudo da bibliografia sobre: tragédia em geral, a peça de Sófocles Édipo rei, as diversas versões da peça em português, inglês, francês e grego. Essa etapa culminou na elaboração do texto Óidipous, filho de Laios. Ela contou com a colaboração de Fernando Salis, Professor Adjunto da Escola de Comunicação da UFRJ no estudo e no estabelecimento do texto, e de Izabela Bocayuva, Professora Adjunta de Filosofia da UERJ, na assessoria do grego. Enquanto isso, eu dediquei meus cursos e seminários no Mestrado da UVA e em Formações Clínicas do Campo Lacaniano sobre o assunto a partir de textos de Freud e de Lacan. Paralelamente a essa pesquisa sobre a peça desenvolvemos a pesquisa sobre a música e filosofia na tragédia com a colaboração de José Eduardo Costa Silva, Professor de Escola de Música da UEMG, Doutorando de Música da UNIRIO, compositor e alaudista a partir das indicações de Nietsche no Nascimento da tragédia e o espírito da música. O Professor José Eduardo compôs a trilha sonora original de Óidipous, filho de Laios.

Leitura dramatizada
Criação da Cia. Inconsciente em Cena
Em seguida, numa segunda etapa, criei a Cia. Inconsciente em cena e começamos as leituras e ensaios com os atores a partir do texto Óidipous, filho de Laios que culminou numa leitura pública dramatizada com trilha sonora e figurinos (da designer Valéria Naslausky), ambos originais, com o apoio da FAPERJ e da UFRJ (na qual o Professor Fernando Salis atuou como protagonista e dirigiu, com seus alunos da ECO na produção de um vídeo), para mais de 300 pessoas no Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ em dezembro de 2007.







Obra em processo - pesquisa cênica, corporal e musical

O ano de 2008 foi o ano dedicado aos ensaios e à criação da encenação da peça para a qual
contamos com a colaboração de Regina Miranda, coreógrafa e Diretora do Centro Coreográfico do Rio de Janeiro e do Centro Laban de Nova York na movimentação corporal.

Lilian Chalub ensaia com Regina Miranda o suicídio de Iokaste



E do Professor Domingos Sávio de Oliveira do Mestrado de Fonoaudiologia da UVA pra o trabalho de voz. Nesse ínterim estive em Paris apresentando e testando o resultado de minhas pesquisas na Ecole de Psychanalyse des Fóruns du Champ Lacanien e em contato com o grande helenista Jean Bollack com quem mantive, antes e depois, correspondência sobre minhas interpretações da tragédia de Sófocles.





Ao longo do trabalho de direção e mise en scéne foram efetuadas quatro apresentações públicas de nossa "obra em progresso" (work in progress): em julho em São Paulo durante o V Encontro Internacional da Escola dos Fóruns do Campo Lacaniano eno Festival de Inverno de São João del Rey, sendo a última em 31/10/2008 na UVA (Campos Tijuca), em setembro na Semana de Psicologia da UVA e em outubro no Colóquio Internacional do mestrado de Psicanálise, Sáúde e Sociedade e X Jornadas de Formações Clínicas do Rio de Janeiro.



Óidipous (Marcelo Mello) e Iokaste (Lilian Chalub)



Resultados

Qual história contar?
O primeiro resultado da pesquisa foi um resultado teórico que influenciou todos os outros resultados no ensino, na transmissão e no teatro: a origem da maldição que Édipo herdou brilha por sua ausência tanto nas peças de Sófocles que chegaram até nós quanto nos textos de Freud e de Lacan. Trata-se da desmedida de Laios, pai de Édipo, que raptou Crísipo, o filho de Pélops, por quem se apaixonara causando assim a ira paterna que lançou a maldição que toda a descendência herdou. A partir daí elaboramos a importância do Pai real do gozo cujo crime é transmitido inconscientemente ao sujeito determinando sintomas e inibições.


A transcriação
A reinterpretação da peça resultou em uma original transcriação – conceito de Augusto de Campos para se referir a uma tradução criativa com liberdade do autor que a recria e transforma o texto original em uma obra sua – que é o texto Óidipous, filho de Laios. Nesta, o herói, Óidipous é levado pela paixão da ignorância e se engana ao interpretar a Esfinge ignorando que o enigma se referia à sua origem, seu passado e seu futuro. No processo de transcriação, procurei aproximar o texto de 2.500 anos para o contexto atual interpretando o papel dos deuses (Atenas = sabedoria, Ártemis + coragem, Apolo = poesia) considerando que o oráculo é o que está escrito para cada um em seu inconsciente. E a tragédia é o que herdamos dos Outros que nos antecederam e sobre a qual não queremos saber. Isso resultou num texto de acesso fácil, com linguagem coloquial que contam a história sem perder sua tragicidade.

Encenação
Quanto à encenação, nossa pesquisa aproximando a tragédia grega de nosso contexto levou-nos aos índios brasileiros e a situar Tebas, cidade de Édipo, na fronteira greco-xingu (imaginária e mítica) – isto orientou nossa proposta de encenação e nossa pesquisa de adereços, de máscaras e figurino e de cenografia optando pela caracterização dos índios do Xingu (FUNAI no Rio de Janeiro).
Teirésias (Aline de Luna) com máscara de índio do Xingu

Valorizando a música como elemento dionisíaco da tragédia, agregamos instrumentos musicais de diversas culturas e épocas apontando para a universalidade do tema e colocamos em cena dois atores músicos (uma cantora lírica) além do compositor professor que sobe ao palco para reger o coro, operar o som e tocar diversos instrumentos.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

A música na tragédia



A música de Óidipous, filho de Laios
Como produzir o trágico?

por José Eduardo Costa Silva


Enquanto estava compondo a trilha de Óidipous, eu me perguntava: o que, efetivamente, torna uma música trágica? Como produzir os efeitos do trágico?Ou seja: como produzir a angústia e o desejo de transgressão do mundo sensitivo? Como produzir o êxtase através da música? Como atender a diretriz da encenação de situar o fenômeno do trágico no eixo Grécia-Xingu?


Considero que o caráter universal do trágico torne a música trágica supra-temporal e supra-cultural. Por isso, há música trágica em qualquer tempo, em qualquer região, em qualquer cultura: seja na Grécia, no Xingu ou no Rio de Janeiro. É possível verificar esse fato porque conhecemos os efeitos do trágico.

O vir-a-ser

A música trágica sugere que exista algo além do que está presente em nossos sentidos. Produz angústia; um convite à transgressão do que é valor e significado. Ela é da ordem do transitório, do vir-a-ser; daquilo que não se fixa em uma presença determinada. A música trágica leva ao êxtase, colocando-nos no limite do desvanecimento do “eu”, convidando-nos à experiência de todas as possibilidades do ser.

O dionisíaco


Dionísio com Pan e Eros

Em A Origem da Tragédia no Espírito da Música, Nietzsche associa a música trágica ao culto de Dioniso que, dentre os gregos, é o deus “despedaçado pelos Titãs”, para eternamente retornar em formas individuadas. Este é o significado permanente do espetáculo trágico: o despedaçamento de uma totalidade em formas individuadas, que são os outros deuses e as “personagens mascaradas”. A música é o elemento dionisíaco da tragédia.


Da totalidade à fragmentação

Óidipous traz o destino em seu nascimento:a auto-destituição de si mesmo enquanto sujeito, configurada pelo horizonte inexorável da morte, na medida em que ele foi vítima da tentativa de assassinato da parte de seus pais. Eis o caráter universal do trágico, pois, afinal, todo ente vive a experiência da geração e da corrupção, do erguimento e do desvanecimento e, sobretudo, das circunstâncias que fazem dele mesmo um ente fugaz, destacado da totalidade.

Optei por trabalhar musicalmente a tensão entre totalidade e fragmentação ou, em termos filosóficos, a tensão entre constância e devir. Este procedimento poético é tradicional. Está presente em obras de todos os períodos estilísticos, destacadamente na música grega da antiguidade, no barroco e no romantismo tardio. Entendo que a generalidade deste procedimento ocorre devido à conexão entre arte e ser: a arte, enquanto princípio de articulação do pensamento, reivindica que reconheçamos o que é e o que estar por vir.

A técnica

Para criar a sensação de totalidade e/ou constância recorri às seguintes técnicas: 1) produção em midi de melodias minimalistas, pautadas na repetição, reiteração e variação de elementos da rítmica grega e indígena, assim como da constante aparição de um motivo melódico, que perpassa a trilha sonora em seu conjunto; 2) acentuação da sensação de circularidade do tempo, através do retorno constante às estruturas musicais determinadas, reconhecíveis pelos ouvintes; 3) predominância de timbres, cuja proveniência é facilmente reconhecida, tais como timbres produzidos por sinos, madeiras e chocalhos.


Notação de música grega (melopéia) em stela grega (museu de Delfos)

Em contrapartida, para criar a sensação de fragmentação e devir trabalhei com elementos de caráter aleatório, quais sejam: 1) gestos musicais de altura, ritmo e timbre não determinados; 2) gestos musicais apresentados fora de uma periodicidade temporal; 3) combinação entre sons contínuos, isto é, sem alturas definidas e sons discretos, isto é, aqueles que reconhecemos como notas.

A música de Óidipous é trágica na medida em que é produzida a partir de um amálgama essencialmente conflituoso: música produzida no computador e música interpretada em cena. Ela traz à audição tempos mensurados e não mensurados, sons determinados e não determinados, elementos rítmicos conflitantes, timbres de origens diversas, que nos situam em diversos pontos de nossa memória musical. Para sua realização utilizamos instrumentos de diversas origens: barrocos, indígenas, tibetanos, rurais, etc..

Procurei fazer uma música para Óidipous que fosse trágica na sua relação com o texto. Se, por um lado, sua estrutura constante oferece um apoio para a fluidez da representação teatral, suas estruturas aleatórias buscam expressar as reações que o texto solicita. Trata-se de uma música de cena, que comenta o texto, no entanto, sem explicá-lo: falta-lhe signos remissivos para tal. É nesse último aspecto que a música se insere na trama como mais uma personagem; justamente aquela que de perto assiste o desenrolar da trama e instaura-se afetivamente como questão.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Carta de Édipo a Freud

Carta de Édipo a Freud do umbigo da Terra

Em Delfos









Numa viagem à Grécia que fiz em 2006, tive uma experiência extraordinária.


Após passar por Corinto, Micenas e Tebas, cheguei a Delfos, situada na encosta do Monte Parnasso, onde havia o famoso templo de Apolo e se ia consultar o oráculo através da Pitonisa.

Zeus, desejando encontrar o centro da terra, largou duas águias das extremidades do mundo; as duas aves sagradas encontraram-se em Delfos, determinando assim o "umbigo" da terra - o Ônfalo - por onde Apolo se pronunciava através dos sonhos.







O ônfalo (museu de Delfos)
Umbigo da Terra







Quando já ia saindo, perambulando pelas ruínas do templo, qual não foi minha surpresa de encontrar perdida, no chão, entre dois pedaços de coluna de mármore, uma carta toda amarrotada e bem envelhecida que de pronto apanhei. É esta carta, uma vez traduzida, que envio para os leitores do blog.

Kalimero (Bom dia), Dr. Freud,





Escrevo-lhe do templo de Apolo, em Delfos – ônfalo da Terra –, onde vim consultar o oráculo para saber de meu destino nos séculos vindouros. Esta carta deve ser aberta no aniversário de 150 anos de seu nascimento.



Antes de mais nada: parabéns Doutor Freud! Parabéns por ter mantido viva a mântica dos sonhos, essa prática da interpretação onírica inaugurada pelos mestres da verdade aqui na Grécia e ter dela feito o paradigma da ação do analista.






Apolo agradece.






Obrigado por ter revelado ao mundo que partilho com cada ser humano meus crimes e gozos como filho daquele que, se em sonhos não morreu, teria morrido por minha mão-fúria, e daquela com quem partilhei o parto-coito e me fez pairmão de minha filial fratria.

Que não me julguem erroneamente: minha presença é menos historieta familiar do que estrutura trágica que carrego com meu nome em cada ser-para-o-sexo, em cada ser-para-a-morte. Eu sou o Inconsciente.



Graças ao senhor, Dr. Freud, mestre moderno da Alétheia, o Desocultamento, isso hoje é por todos sabido. O senhor leu na tragédia que Sófocles escreveu sobre mim a verdade do desejo de todo o mundo. A tal ponto que hoje meu nome é indissociável do seu. Estamos amalgamados.







Como aos 150 anos de seu nascimento dizem que eu não mais existo? Que sou velho, ultrapassado, anacrônico? Ha, ha, ha! Acompanho ao longo dos séculos a macromedição de Cronos, vendo homens e mulheres vindo à luz, esmaecendo e apagando. Carrego em mim a lei e sua transgressão, o não-saber sabido de meu desejo e de meus atos, a divisão entre Tebas onde sou rei e Colono onde termino excluído, como bem escreveu Sófocles em sua última tragédia.





Teatro de Delfos

Dizem que o mundo está para além de mim? E que eu já estou ultrapassado. Parakalo! (Por favor!) O que chamam do "para-além de Édipo"está em meu próprio fim inscrito desde minha concepção. Nasci junto com minha morte. E alguém é diferente? Meu para-além escapa ao deciframento. Lá está ele! Lá onde a Erínias bebem o sangue da vingança das vítimas de Tânatos; lá no reino da dor de existir, no silêncio das tumbas. Onde cego, alquebrado, dejeto da civilização grito: Me funai! Antes não ter nascido! Até o para-além de mim, a mim é referido.

Não me venham com interpretações oportunistas dizendo que o mundo mudou e que eu sou uma invenção feita sob medida por um habitante de uma Viena fim de século! Sobreviverei, graças ao senhor, Dr, Freud, a todos aqueles que dizem que não sirvo mais para nada.

Como apagar a marca de castração, que o senhor captou, de meu ato de furar meus olhos? Cuja angústia é o sinal da realização de um gozo atingido para além do possível? É a marca de que ali o olhar se fez presente trazendo à luz o que não podia ser visto. Quando eu via, nada enxergava, quando abri os olhos à verdade da castração, ela os arrancou de minha visão. E pude então saber. Mas que travessia dolorosa foi-me necessária para chegar a esse saber!

Ao recusar-me eles enlouquecerão, pois estarão recusando o complexo lei-transgressão-castração chamado pelo meu nome. Retirem-me de cena e a psicose advirá: seja no imperial-terrorismo paranóico, seja na desagregação capitalista esquizofrênica.

Ao abrirem esta carta, no dia 6 de maio de 2006, o senhor terá uma legião de inimigos, como sempre teve aliás. Mas agora seus detratores, ameaçados, usam de tudo para denegri-lo e desconhecer minha existência trágica em cada um deles.

E isso em nome de quê? Da ciência, da religião e da ideologia capitalista? Sim, rejeitam a fragmentação dionisíaca da pulsão em nome do ideal, do comando e da tirania do Um. Esse Um tão entediante e mortificador. Recusam meu daimon, que o senhor chamou de pulsão, que na verdade é o daimon deles. Isso pouco os interessa e quando ele se manifesta tentam anulá-lo com entorpecentes. Parabéns, Doutor Freud por resistir a tudo isso e manter vivo o paradoxo da coexistência de daimon e logos.


Nascerei tantas vezes quanto me matarem pois trago o marco do desejo indestrutível em minha tragédia, o marco da estrutura em meu mito, e o marco do saber em meus pés. Sim sou capenga, coxo e claudico e assim me mantenho nas andanças do ser: ao pé da letra. Graças ao senhor, Doutor Freud os homens sabem que eles sou eu: um manco. Manco, sim. Um manco que pode dançar no coro dos discursos.

Obrigado Doutor Freud por fazer meu percurso, como Sófocles o descreveu, ser reencenado a cada análise fazendo cada sujeito proceder a uma investigação sobre a origem, o Eros e o ato. Diante do deus-que-porta-o-fogo esfolando a polis – praga amarga – despovoando as moradas cadméias e o Hades negro se enriquecendo de lágrima e lamento, eu rei de Tebas comandei a investigação procurando o culpado de tantos males.

A tumba de meu pai – eu não o sabia – era um olho enorme a olhar-me. Eu seria um homem vil se à verdade me furtasse após ter sido louvado como o decifrador da ríspida cantora a Esfinge, cadela das rapsódias.


A Esfinge (Museu de Delfos)


É verdade, não ouvi de Tirésias, o adivinho cego-que-vê: “Sabes ser o horror dos teus? Com o terror nos pés, a maldição mater-paterna, açoite duplo, há de expulsá-lo daqui”. E a ortovisão me anunciou meu triste fado. Eu salvador da polis era seu destruidor. Movido pelo desejo de saber – o terá sido minha paixão da ignorância ?– não me detive – nem mesmo quando minha mater-esposa gritava: “encerra a busca!”. Não o destino não a previra: a busca foi escolha minha. Não recuei diante de obstáculo algum até ver o impossível. O senhor teve a coragem de buscar-me em cada ser e, amorosamente, levá-lo, a saber o que já é dado, e a poder transformar a infelicidade do destino no efeito trágico do entusiasmo pelo saber.



Parabéns, Doutor Freud.

Assinado: Édipo



Obrigado a todos pela atenção,
Antonio Quinet






sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Freud e a Esfinge

“De onde vêm os bebês?” eis para Freud o enigma da Esfinge.



Sigmund Freud

Toda criança coloca essa pergunta como um enigma antes mesmo de saber algo sobre a sexualdidade. Pode surpreender que Freud interprete assim o enigma da Esfinge. Mas o entendemos quando verificamos que o que está em jogo mesmo nessa charada da Esfinge é a questão sobre o desejo do Outro. De onde eu vim? Como vim para aqui neste mundo? Meus pais me quiseram? Desejaram que eu viesse? Acolheram-me?

O Outro me deseja? Será que meus pais me desejaram?
Qual o meu lugar no desejo do Outro? Tenho algum lugar aí?

Sou filho do Amor, do Acaso ou da Morte?

No enigma da Esfinge está em jogo a questão do saber o seu lugar em relação ao desejo do Outro, os pais.


A Esfinge - Irina Ionesco

Óidipous, tem os pés inchados porque seus pais quiseram matá-lo.

Não, Óidipous, você não tem lugar no desejo do Outro. Seus pais quiseram eliminá-lo quando você chegou. Você não tem lugar neste mundo.

Ou tem? E deve conquistá-lo?

De juiz a réu


No caso da peça de Sófocles sobre o Édipo, esse Outro não só é representado por seus pais verdadeiros como também por Tebas, a Polis. No início da peça ele tem um lugar de rei nesse Outro, de sábio, de salvador, pois ele com sua inteligência desvendou o enigma da Esfinge e liberou Tebas daquele terror. E daí vemos todo o povo a ele se dirigir suplicando que, assim como daquela vez, salvasse o povo e desvendasse o enigma da peste. Por que os deuses tinha enviado a peste? Por que eles estavam sendo castigados? Kreon traz de Delfos a resposta: a peste está aí por que o assassino de Laio ainda não fora punido. E ao se encarregar da busca, como um juiz, ele descobre que é ele o réu.

De rei a rebotalho
Ao longo da peça ele descobre que ele é a causa da peste e no final ele não morre como ocorre com outros heróis de outras tragédias gregas, mas é banido, exilado de Tebas. Édipo se torna um “sem-lugar”, Ektopos, e realiza assim o desejo do Outro (aqui os pais) de exclusão. Sua trajetória é de rei a rebotalho, de dentro de Tebas para fora dela, de desejado a expulso, de adorado a odiado.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

O enigma dos pés

Dipous, tripous, tetrapous

A Esfinge - Franz Von Stuck




A Esfinge colocava o seguinte enigma para todos os que chegavam a Tebas.

Quem tem dois pés sobre a terra... e quatro pés...e três pés. E um só nome? Sem mudar de natureza ele pode se mover na terra, no ar ou no mar. Quando ele anda com o maior número de pés sua destreza é menor.
(cf. Asclepíades, poeta trágico do séc. IV AC que escreveu,segundo Jean Bollack, uma coletânea sobre as tragédias)

A versão resumida e simplificada foi a que ficou conhecida:

O que é que de manhã anda com quatros pés, de tarde com dois pés e de noite com três pés?
(cf. Apolodoro e Ateneu)


Óidipous respondeu “É o homem” e a Esfinge se mata jogando-se num precipício. Sua resposta é em parte verdadeira, pois na manhã de sua existência o homem engatinha de quatro como criança, depois como adulto anda com dois pés, na noite de sua velhice, ele caduca com três pés apoiando-se em uma bengala curvado com o peso da idade.


Mas só em parte sua resposta é verdadeira, pois ela “mascara o verdadeiro problema: o que é então o homem? O que é Édipo? A pseudo-resposta de Édipo abre-lhe as grandes portas de Tebas. Mas, instalando-o na chefia do Estado, ela realiza, dissimulando-a sua verdadeia indentidade de parricida e incestuoso" (J.-P. Vernant, Mito e tragédia na Grécia Antiga, Duas Cidades, 1977, p. 91).
O enigma da Esfinge é o enigma da identidade e da origem. O que sou eu? De onde vim?

É o “enigma dos pés”, pois a história de Óidipous está escrita em seus pés - seus pés inchados – que foram furados por seu pai na tentativa de matá-lo para que esse não o matasse e assim se cumprisse a maldição de Pélops. (vide texto deste BLOG “A maldição dos Labdácidas”).


Quem é tetrapous, dipous e tripous, Oidipous? Não dava para escutar o jogo de palavras contido no enigma? Édipo "é o-de-dois-pés", Oi-dipous. A resposta ao enigma da Esfinge é o próprio Édipo.

Sua resposta é, portanto, uma pseudo-resposta. E a Esfinge desaparece naquele momento, mas a verdade que ela encarna volta sob a forma da peste, anos depois, quando ele já tem quatro filhos com sua mãe, Iokaste.


Mas ele só escuta: o homem, no sentido de humanidade e não no sentido de que ele é "o homem" em questão.

Édipo liberta o povo de Tebas da pergunta sobre a verdade, sobre o que é o homem. Assim, ele “suprime o suspense da questão sobre a verdade da natureza humana que ele mesmo encarna” (Lacan, O seminário, livro XVII, O avesso da psicanálise, p. 113-114).

Óidipous, portanto, decifra o enigma da Esfinge e se torna rei, é considerado um sábio fazendo justiça a seu nome: Oi remete a oida que é “eu sei” e pous é “pé”. Édipo é "aquele-que-sabe-do-pé", ele é um “eu sei pé”. Mas é justamente isso que ele não quer saber, movido pela paixão da ignorância.
Ele não escutou o enigma dos pés. E não quis saber de sua origem e do crime do pai

O enigma que a Esfinge está colocando é o enigma do próprio Édipo. Ela está se referindo a ele mesmo: é ele que é ao mesmo tempo criança, adulto e velho. Pois com o incesto ele confunde as gerações sendo filho e marido da mãe e sendo irmão de seus próprios filhos e seria avô de seus sobrinhos se seus filhos tivessem descendentes.

Assim, o nome de Oidipous traz a marca de sua origem, ou seja, a marca de exclusão, a marca do desejo mortífero do Outro (representado por seus pais). Seu nome e seu corpo são os lugares de inscrição de sua história: ele nasceu como o herdeiro do trono de Tebas e seus pais negaram-lhe esse direito e o direito à vida.

Seu nome contém a pergunta e a resposta sobre a origem, a mesma que ele colocara ao oráculo de Delfos, quando saiu de Corinto para saber quem eram seus pais: “Quer saber onde nascestes? Teus pés inchados mostram que és de Tebas e que teus pais quiseram matar-te”.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Atualidade de Laios

O Tempo de Laiusar


O pai real do gozo: Édipo, Laio por Freud e Lacan

de Antonio Quinet

Estamos em tempos de Pai real. A figura representativa do Pai simbólico, aquele que une o desejo com a lei, que barra o gozo devastador da Mãe, o pai normativizador que protege e apazigua, esse pai está desaparecendo na aletosfera espessa produzido pela fumaça do desmatamento da subjetividade no mundo contemporâneo. De nada adianta lamentar o declínio da autoridade paterna, acusar o pai de humilhado, impotente e desdentado e receber o que todos já sabem que quem é o escravo da família é o papai.

A figura paterna que tem emergido de seu obscuro anonimato é o Pai real, o grande fodedor, como diz Lacan, o pai sacana fora da lei, gozador, que trata os filhos como objeto.




Temos como exemplo recente o austríaco Joseph Fritzl mantendo em carceragem sua filha por 18 anos nela engendrando seus próprios filhos. E o pai violento, possuído por uma ignorância feroz como o pai de Izabela que auxiliado pela madrasta num ato insano a atirou pela janela abaixo.




Nossa sociedade contemporânea parece viver o mito de Totem e Tabu às avessas: o desmoronamento da Lei simbólica deixa aberto o caminho para o retorno do cadáver vivificado do pai morto, o Urvater, figuração do Pai real, como pai gozador da horda primitiva, tirânico abusador e assassino, que é chamado por Lacan de pai Orangotango.


crânio de orangotango macho pongo pygmeo

O assassinato do pai e sua substituição simbólica por um totem, fez Freud dizer que no inicio era o ato – no inicio da civilização era o ato. Nesses tempos de barbárie contemporânea o que faz aparição não é o ato dos filhos impondo a Lei e sim os atos desmedidos do Pai real que faz a sua lei – lei do gozo – fora de qualquer Lei do campo do Outro.

O mito de Édipo à luz do Pai real do gozo
Laio e sua desmedida
Retormemos o mito de Édipo à luz do pai real e de Totem e Tabu. Quem é o pai de Édipo? Na verdade ele teve dois pais: o pai biológico Laio, rei de Tebas, que ele não conheceu e sem saber o matou, e Pólibo, que o criou em Corinto. Mas é Laio, que aparece como Pai real cuja desmedida constitui a Até, a desgraça, a maldição dos Labdácidos e que será transmitida e paga por três gerações: o próprio Laio, Édipo e seus filhos Etéocles, Polinice, Antígona e Ismênia. Laio é filho de Lábdaco, rei de Tebas e quando este é assassinado, ele é levado aos 2 anos de idade para a Frígia sendo recebido pelo rei Pélops que o adota. Laio tem também dois pais. Pélops tem um filho Crísipo o qual, ao chegar na adolescência, é entregue a Laios para educá-lo. Este se apaixona pelo menino e o rapta e Pélops lança, então, a maldição: "se tiveres um filho ele te matará e toda tua descendência desgraçada será". Daí vem a maldição e toda a história cujo desdobramento está na peça de Sófocles da qual vocês assistirão minha versão após esta mesa. A desmedida de Laios não foi ter tido relações com Crísipo, pois a relação pedagógica erastes-erômenos era aceita como uma relação pedófila normal de amante-amado, professor-aluno na qual o saber não é transmitido sem Eros. A hybris de Laios foi tê-lo seqüestrado e com isso ter rompido as leis da hospitalidade e traído aquele que o acolhera. A maldição de Pelops para Laio é o que o faz furar os pés de seu filho Édipo e mandar matá-lo.
Na minha interpretação, Édipo não quis saber do crime do pai e nem de sua tentativa de assassinato. Ele, em sua investigação, foi até o ponto em que descobre que ele matou o pai e que a mulher com quem está é sua mãe. Mas não vai, além disso pois não quis saber da maldição herdada e da desmedida paterna.

Laiusar
Se compararmos o desenvolvimento trágico da investigação de Édipo sobre sua origem, como o fazem Freud e Lacan, com o percurso de uma análise podemos dizer com Lacan que se Édipo tivesse tido tempo de laiusar ele talvez não teria tido o desfecho que teve.
Lacan introduz esse comentário sobre a peça de Sófocles Édipo Rei no seminário RSI quando aponta que o furo do simbólico, correspondente ao recalque originário, é a morte. A peste, diz Lacan, é isso: a morte é para todos. "É preciso que a peste se propague em Tebas para que esse "todos" cesse de ser de puro simbólico e passe a ser imaginável. É preciso que cada um se sinta concernido pela presença da peste". Esta é portanto, o real do furo do simbólico imaginarizado – peste que é o desdobrametno da calamidade provocada pela Esfinge, outra figura da morte e da Até, desgraça, dos Labdácidas. Édipo, continua Lacan, só matou o pai por não ter se dado o tempo de Laiusar. Se o tivesse feito, o tempo que fosse preciso, teria sido o tempo de uma análise, pois era para isso que ele estava na estrada" (Lacan, RSI, lição de 17/12/1974)
Laiuser em francês é derivado de lalue que significa discurso, fala, peroração no jargão das Escolas. User em francês significa utilizar e também gastar,usar até acabar como uma sola de sapato que de tanto se usar vai gastando e acaba. Na análise é preciso tempo para usar e gastar o pai real. Tempo para se ir para além do desejo de salvar o pai, defrontar-se com seu crime e vencer a ordem de ignorância feroz.

Salvando o pai... para não ver seu crime
Passando do mito à estrutura: é preciso tempo para se haver com o impossível do furo do simbólico lá onde jaz o gozo do pai rela imaginarizado uma vez que pai real e pai imaginário tendem a ser imiscuir um no outro. É o pai que a parece como abusador e criminoso na histeria e na neurose obsessiva cujo gozo se sintomatiza no filho. É o pai de tal paciente do hospital que a espancava quando ainda bebê ela chorava e que hoje seu sintoma é um choro sem fim e sem razão; ou o pai militar que colaborou com a ditadura militar de tal outra analisante que faz de seu corpo um palco de torturas, ou o pai fiscal do imposto de renda de um obsessivo que se enriqueceu ilicitamente deixando para o filho a dívida do eterno desemprego.
O neurótico prefere salvar o pai do que se deparar com sua canalhice; ele prefere sofrer com seu sintoma do que saber do crime do pai e suas conseqüências. Prefere, como Édipo, se sentir culpado de seus atos do que desvelar a desmedida do gozo paterno. Deparar-se com o real do pai é confrontar-se com a conseqüência da falta radical do Outro, ou seja, o gozo mortífero para além desamparo. E para isso é preciso Laio-usar – gastar o Laio de cada um.


O espectro do Pai
A posição do pai real, segundo Lacan, está articulada em Freud como um impossível e não é surpreendente, diz ele, que encontremos sem cessar o pai imaginário. É uma dependência necessária, estrutural. (sem. XVII). A imaginarização do pai real tem seu paradigma no ghost - o morto vivo.


Desenho de Gordon Craig para a cena do fantasma de Hamlet Pai (1908)

É o que vemos na figura do fantasma do pai: o espectro do cadáver vivo, como o pai do Homem dos ratos que apesar de morto lhe aparece vivo no meio da noite e o pai de Hamlet que além de aparecer tem fala. O espectro é o habitante dessa zona entre-duas-mortes, campo de gozo, do Hades ao inferno, onde penam as almas pecadoras e criminosas à espera da segunda morte. "Sou o espírito de teu pai e vivo errante noite e dia até que a podridão de meus crimes seja queimada e purificada" – diz o pai de Hamlet no início da peça. As mitologias criaram esse habitat para o pai real. Mas quem queima é o filho. Ele arde por causa dos pecados do pai, como diz Lacan (Seminário XI). Pai, não vês que estou queimando por causa de teus pecados? E o espectro do pai de Hamlet lhe diz que "a menor de minhas faltas angustiaria tua alma, gelaria teu jovem sangue e teus olhos saltariam das órbitas como os astros de suas esferas..."
Os crimes do pai são de um real que não cessa de não se dizer para o filho e no entanto insiste e se tornam um sintoma do filho – como a dívida do pai do homem dos ratos e o gozo oral do pai de Dora.
O espectro recobre, mascara, vela e também desvela o pai real ou o real do Pai. O espectro é a encenação da articulação entre o pai real e o pai imaginário. É o que se encontra, como diz Marc Strauss, na fantasia de Bate-se numa criança em que as cenas vêem ao sujeito petrificar, cristalizar um excesso como um ciframento primeiro, uma representação do inominável do gozo (Tréfle, maio 1999, nº 2, p. 48). Não importa se é efetivamente do gozo do Pai que se trata ou do gozo imaginarizado do Pai e sim do dispositivo que o sujeito emprega para endossar um gozo que se apresenta a ela como exterior, vindo do Outro.

"É proibido ver a nudez do Pai"
O pai do crime não é o pai da lei, o Nome-do-Pai. O pai estuprador, ladrão, assassino, são figuras do pai imaginário que do fórum à hybris do pai: o gozo desmedido. A desmedida do pai com seu real é aquilo que o filho, com força, não quer saber. O homem é como Édipo, filho de laio – ele não quis saber da desmedida paterna. No lugar do pai real existe, diz Lacan, a ordem de uma ignorância feroz (Seminário XVII, p. 159).
Há uma interdição: "Está excluído que se analise o pai real, diz Lacan em Televisão, o melhor que se pode é o manto de Noé, quando o pai é imaginário" (Télévision, Seuil, p.35).

O manto de Noé - Chagall

Um dia Noé se embriagou e ficou nu em sua tenda. Um de seus filhos, Chan, o viu e foi chamar os outros dois que, ao chegar, taparam os olhos e o cobriram com um manto para esconder a nudez paterna e saíram de costas. Estes se salvaram e a toda a descendência de Chan foi amaldiçoada. O que Noé fazia nu na tenda, jamais saberemos, mas sem dúvida era algo da ordem de um gozo que filho algum poderia em tempo algum ver ou saber. Toda nudez do pai será castigada... no filho.

O filicídio de Abraão

O pai que mata o filho é abordado por Lacan a partir do sacrifício de Isaac por seu pai Abraão comentado por Kierkegard descrito em temor e tremor em que descreve quatro variações do mito que se diversificam a partir do ponto em que Deus diz a Abraão:


"Sacrifica teu filho, mate-o!"


O sacrifício de Abraão - Caravaggio

É na primeira que ele descreve a tentativa de filicídio.. Abraão agarrou Isaac pelo peito, jogou-o no chão e gritou: "Estúpido! Crês tu que sou um pai? Não, não sou teu pai. Sou um idólatra! Crês que estou obedecendo a um mandato divino? Não. Faço isso somente porque me dá vontade e porque me inunda de prazer!". Abraão aparece como o pai real que diria: "Vou te matar por puro gozo!". "Então Isaac exclamou angustiado: 'Deus de Abraão tende piedade de mim! Sê meu pai, já não tenho outro neste mundo!'. Abraão se dirigiu a Ele, dizendo: Senhor onipotente receba minha humilde ação de agradecimento, pois é mil vezes melhor que meu filho acredite que sou um monstro do que perca a fé em ti" (Kierkegaard, 2004, p. 22). O pai monstro, capaz de matar o filho nem que seja por amor a Deus, é o que é transmitido ao filho como seu pecado.
É a propósito dessa passagem de Kierkeggard que Lacan diz no Seminário XI que o que se herda é o pecado do pai. Isaac herda o crime do pai de ter desejado matá-lo. Eis a herança de Isaac e também a de Édipo.

Óiidpous, o pé da letra

Diferentemente de Abraão, que no mito judaico-cristão recebe a ordem de Deus de matar o filho predileto como prova de seu amor, Laios ele mesmo decide matar seu filho Édipo para evitar que este o mate segundo a maldição oracular, fura-lhe então os pés e o entrega a um pastor para ser jogado no lixão do monte Citéron.
O Urvater de Totem e tabu, Noé com sua nudez, o Deus de Abraão, Yavé com sua ignorância feroz e Laios são figuras imaginárizadas e míticas do pai real.
Édipo carrega em seu nome e em seu corpo a marca do crime do pai. A ferida causada por seu pai ao furar-lhe os tornozelos para pendurá-lo como um animal e expô-lo e o edema que ocasionou foi o que lhe deu o apelido de Oidipous, de oiden, edema nos pés. O apelido virou nome próprio e a ferida deixou-lhe coxo. Seu pé carrega um saber (oida) sobre o crime do pai do qual Édipo não quis saber. A esfinge, como aponta Jean-Pierre Vernant, enunciava o enigma dos pés e equivocava com seu nome: "tetrapous, dipous, tripous" disse ela para Óidipous que ao dizer o homem como resposta suprimiu, como diz Lacan, o suspense da verdade. A verdade sobre a castração e o gozo de Laios – o pai real se manifesta em Édipo como aquele que determina a Até família dos Labdácidos do qual ele e sua descendência são herdeiros e também se manifesta como ignorância feroz: mandamento superegóico de não-saber. Eis porque para além do desejo de saber que o impulsiona a querer investigar sua origem, Édipo é possuído pela paixão da ignorância. Aliás, não será a força dessa paixão que faz Lacan dizer que finalmente não existe desejo de saber algum?
O que Édipo ignora é que seu nome é uma letra que cifra um gozo, o gozo do Outro paterno: o "x" da função do sinthoma, ou seja, uma escrita do gozo do Inconsciente.

Óidipous, o que é tetrapous, dipous, tripous?

Édipo e a Esfinge - Gustave Moreau

Óidipous, Pé Inchado é o signo do gozo do Pai que desejou matá-lo e do qual ele não quis saber; Óidipous, Pé-que-sabe é a letra que confere a marca do saber do real, saber do crime do pai da origem da Até dos Labdácidas - móvel do filicídio que faz de Édipo o objeto rejeitado pelo Outro – é o selo de seu ser de dejeto. Rejeitado pelos pais e, no final da peça de Sófocles, ao se apagar como sujeito, pelo Outro social, que representa Tebas. Óidipous não acredita em seu ser de synthoma, não acredita que ele seja capaz de um dizer, pois ele não quer saber que se trata aí de uma cifra do gozo. Eis porque erra em sua ignorância e fica escravizado pelo gozo do Pai, servo do destino. Édipo está preso à ignoerrância.
O crime do pai real como gozo desmedido é transmitido como erro trágico que o filho carrega como Óidipous com seu sintoma no pé.

A análise: tempo de pensar com os pés
Por um lado encontramos a herança da castração que se transmite de pai para filho: Lábdaco , o manco, Laio, o torto, e Édipo, pé inchado. Por outro lado, há a transmissão da maldição que Édipo herda como lote do gozo do pai inscrito em seu nome e seu corpo. Essa letra é o nome do gozo do pai real. O nome que condensa o gozo inscrito no enigma da Esfinge que Óidipous não ouviu.
O tempo da análise é o tempo de laiusar: tempo de laio-ousar – tempo de ter a ousadia de se confrontar com o crime e o gozo desmedido e ectópico do sujeito, que ele localiza no lugar do vazio do Outro – lugar topológico da desmedida do Pai real. É preciso tempo de peroração para o sujeito gastá-lo o suficiente para que se revele o que é: um nada esvaziado de gozo. O tempo de laiusar é o tempo de olhar para os pés, ouvir os pés e pensar com os pés.


Texto apresentado no V Encontro Internacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano em São Paulo, julho de 2008.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

A maldição dos Labdácidas

O Crime de Laios, o Pai


O rapto de Crísipo por Laios e a maldição de Pélops


Laios (o torto, em grego), de acordo com a mitologia grega, é o pai de Óidipous ou Édipo, e filho de Lábdacos, rei de Tebas. Seu pai foi morto por bacantes vingativas pela repressão ao culto a Dionísio. Como Laios ainda era criança, a regência de Tebas foi entregue a Lico. Quando os tiranos Anfião e Zeto mataram o regente e tomaram o poder na cidade, o príncipe de Tebas foi exilado, ainda bebê, na Frígia, na corte do rei Pélops.

Lá foi educado e cresceu. Mais tarde, Pélops teve um filho, Crísipo, príncipe-herdeiro do trono frígio. Quando este se tornou adolescente, Pélops pediu a Laios que fosse seu preceptor, e este se apaixonou pelo menino.
Esse amor homossexual - tolerado pelos costumes gregos enquanto relação pedagógica/pedofílica - deveria ser interrompido quando Crísipo se tornarsse adulto. Mas não foi o caso.

Para continuar a viver seu amor, Laio armou um plano: ofereceu-se para escoltar o rapaz até os jogos de Neméia, onde ele iria participar como atleta. Após as competições, em vez de retornar à Frígia, Laio raptou Crisipo e fugiu para Tebas, onde pretendia recuperar o trono de seu pai, Lábdacos.

Furioso, Pélops perseguiu-os. Por ter perdido o herdeiro, Pélops culpou Laio e lançou sobre ele uma maldição:
“Se tiveres um filho ele te matará e toda tua descendência desgraçada será!”


(Sobre o destino de Crísipo, as versões divergem: ele se suicidou, foi assassinado pela madrasta ou foi levado com Laios para Tebas).


Em Tebas, Laios casou-se com Iokaste ou Jocasta e após a morte dos tiranos assumiu o trono. Assim, a dinastia labdácida foi reconduzida ao poder.

A maldição de Pélops foi ratificada pelos deuses do Olimpo, pois Laios transgrediu as leis da hospitalidade ao trair aquele que o hospedou raptando seu querido filho. Quando Laios tornou-se rei de Tebas, Hera enviou, para Tebas, a Esfinge, com seu enigma das três gerações e seu poder devastador, para punir Laios por seu crime de seqüestro.



The kiss of the sphinx - Franz Von Stuck


Ao consultar o oráculo de Delfos, este lhe disse “se você deseja salvar a cidade, então morra sem filhos”. O que para um rei era terrível: como morrer sem deixar um decendência?

Por causa da maldição, e do aviso do oráculo, Laios tentou evitar ter filhos. (mantendo, segundo Vernant, com a esposa uma relação desviada, do tipo homossexual).

“Mas, ele, cedendo ao prazer,
bêbado, possuído por Dionísio,
colocou dentro de mim
a semente de nosso filho.”
Iokaste, Prólogo de As fenícias, de Eurípedes

Quando nasceu o primogênito, Laios mandou furar-lhe os pés e abandoná-lo no Monte Citéron. Mas o bebê acabou recolhido por um pastor ( de Corinto) e batizado como Óidipous (o de pés inchados) ou Édipo.De acordo com a mitologia, a maldição de Pélops, conhecida como "Maldição dos Labdácidas" (a dinastia tebana iniciada com Lábdaco), foi concretizada quando o Óidipous, filho de Laios, , matou o pai e desposou a própria mãe, tendo com ela quatro filhos, que herdaram a maldição: Antígona, Ismênia, Eteócles e Polinice.


A maldição atingiu três gerações. Óidipous concretiza a mistura dessas três gerações, como apontava a Esfinge com seu enigma. Ele é “sócio de esperma de seu pai e pai-irmão de seus filhos” (cf. Óidipous, filho de Laios).

A característica de Laios é a desmedida, a Hybris, que o faz transgredir as leis da hospitalidade, em seguida descumprir a ordem do oráculo de não ter filhos e depois de tentar matar o próprio filho para que este mais tarde não o matasse, como previu o oráculo e acabou acontecendo.

“Penso, na antiga falta cometida, e tão logo punida,
mas cujo efeito
dura até a terceira geração;
penso na falta de Laios surdo à voz de Apolo, que,
por três vezes,
no assento fatídico de Pitho,
umbigo do mundo,
declarara que ele deveria morrer sem filhos,
se quisesse salvar a cidade”.
Coro em Sete contra Tebas de Ésquilo (versos 742-749).


Obs: Segundo Jean Pierre Vernant, Laios, o torto, “ao tornar-se adulto, mostra-se desequilibrado e unilateral nas usa relações sexuais e no seu relacionamento com seu anfitrião. Ele desvia seu comportamento erótico através de uma homossexualidade excessiva, com uma violência que faz o jovem Crísipo, filho de Pélops, sofrer, rompendo assim as regras de simetria, de reciprocidade, que se impõem tanto entre amantes como entre anfitrião e hóspede.” (Jean –Pierre Vernant, “O tirano coxo: de Édipo a Periandro”, Mito e tragédia na Grécia Antiga, Ed. Perspectiva, 2002, p 183-4).