segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

A música na tragédia



A música de Óidipous, filho de Laios
Como produzir o trágico?

por José Eduardo Costa Silva


Enquanto estava compondo a trilha de Óidipous, eu me perguntava: o que, efetivamente, torna uma música trágica? Como produzir os efeitos do trágico?Ou seja: como produzir a angústia e o desejo de transgressão do mundo sensitivo? Como produzir o êxtase através da música? Como atender a diretriz da encenação de situar o fenômeno do trágico no eixo Grécia-Xingu?


Considero que o caráter universal do trágico torne a música trágica supra-temporal e supra-cultural. Por isso, há música trágica em qualquer tempo, em qualquer região, em qualquer cultura: seja na Grécia, no Xingu ou no Rio de Janeiro. É possível verificar esse fato porque conhecemos os efeitos do trágico.

O vir-a-ser

A música trágica sugere que exista algo além do que está presente em nossos sentidos. Produz angústia; um convite à transgressão do que é valor e significado. Ela é da ordem do transitório, do vir-a-ser; daquilo que não se fixa em uma presença determinada. A música trágica leva ao êxtase, colocando-nos no limite do desvanecimento do “eu”, convidando-nos à experiência de todas as possibilidades do ser.

O dionisíaco


Dionísio com Pan e Eros

Em A Origem da Tragédia no Espírito da Música, Nietzsche associa a música trágica ao culto de Dioniso que, dentre os gregos, é o deus “despedaçado pelos Titãs”, para eternamente retornar em formas individuadas. Este é o significado permanente do espetáculo trágico: o despedaçamento de uma totalidade em formas individuadas, que são os outros deuses e as “personagens mascaradas”. A música é o elemento dionisíaco da tragédia.


Da totalidade à fragmentação

Óidipous traz o destino em seu nascimento:a auto-destituição de si mesmo enquanto sujeito, configurada pelo horizonte inexorável da morte, na medida em que ele foi vítima da tentativa de assassinato da parte de seus pais. Eis o caráter universal do trágico, pois, afinal, todo ente vive a experiência da geração e da corrupção, do erguimento e do desvanecimento e, sobretudo, das circunstâncias que fazem dele mesmo um ente fugaz, destacado da totalidade.

Optei por trabalhar musicalmente a tensão entre totalidade e fragmentação ou, em termos filosóficos, a tensão entre constância e devir. Este procedimento poético é tradicional. Está presente em obras de todos os períodos estilísticos, destacadamente na música grega da antiguidade, no barroco e no romantismo tardio. Entendo que a generalidade deste procedimento ocorre devido à conexão entre arte e ser: a arte, enquanto princípio de articulação do pensamento, reivindica que reconheçamos o que é e o que estar por vir.

A técnica

Para criar a sensação de totalidade e/ou constância recorri às seguintes técnicas: 1) produção em midi de melodias minimalistas, pautadas na repetição, reiteração e variação de elementos da rítmica grega e indígena, assim como da constante aparição de um motivo melódico, que perpassa a trilha sonora em seu conjunto; 2) acentuação da sensação de circularidade do tempo, através do retorno constante às estruturas musicais determinadas, reconhecíveis pelos ouvintes; 3) predominância de timbres, cuja proveniência é facilmente reconhecida, tais como timbres produzidos por sinos, madeiras e chocalhos.


Notação de música grega (melopéia) em stela grega (museu de Delfos)

Em contrapartida, para criar a sensação de fragmentação e devir trabalhei com elementos de caráter aleatório, quais sejam: 1) gestos musicais de altura, ritmo e timbre não determinados; 2) gestos musicais apresentados fora de uma periodicidade temporal; 3) combinação entre sons contínuos, isto é, sem alturas definidas e sons discretos, isto é, aqueles que reconhecemos como notas.

A música de Óidipous é trágica na medida em que é produzida a partir de um amálgama essencialmente conflituoso: música produzida no computador e música interpretada em cena. Ela traz à audição tempos mensurados e não mensurados, sons determinados e não determinados, elementos rítmicos conflitantes, timbres de origens diversas, que nos situam em diversos pontos de nossa memória musical. Para sua realização utilizamos instrumentos de diversas origens: barrocos, indígenas, tibetanos, rurais, etc..

Procurei fazer uma música para Óidipous que fosse trágica na sua relação com o texto. Se, por um lado, sua estrutura constante oferece um apoio para a fluidez da representação teatral, suas estruturas aleatórias buscam expressar as reações que o texto solicita. Trata-se de uma música de cena, que comenta o texto, no entanto, sem explicá-lo: falta-lhe signos remissivos para tal. É nesse último aspecto que a música se insere na trama como mais uma personagem; justamente aquela que de perto assiste o desenrolar da trama e instaura-se afetivamente como questão.

Um comentário:

  1. Poder participar, via blog, do processo da transcriação da tragédia de Sófocles feita por A. Quinet, e dos caminhos da criação da música da peça, através do texto de José Eduardo, tem sido para mim uma experiencia rica, agrádavel e EMOCIONANTE!
    ' Entrar nessa saída' humana da criação, mergulhar através dessa obra em processo, viva, se perguntando até o limite do impossível sobre isso que nos faz humanos!
    E do que se faz também o belo, que transita na corda bamba do horror e da transformação dele - de olhos abertos !
    Nos atalhos de trilhas incertas e escuras, emocionada, me deixo concluir:
    - Vale a pena, saber do que não se quer saber!

    Vera Valadares (Psicanlista) - Belo Horizonte

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